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Mostrando postagens de fevereiro, 2009
Fetichismo Guilherme de Almeida Sou fetichista, adoro tudo que é teu: a página marcada de um livro; o sono de veludo da tua lânguida almofada; um cravo esplêndido e vermelho que morre; a vida singular que tu puseste em cada espelho, ao sortilégio de um olhar; aquele acorde, aquela escala que do teu piano andou suspensa na ressonância desta sala; a tua lâmpada; a presença imperativa de um perfume: o teu chapéu... - tudo afinal que vem de ti, que te resume, tem seu prestígio emocional! E este contato voluptuoso com tanta coisa evocativa é tão sensual, tão delicioso para minha alma sensitiva, que espero, cheio de ansiedade, cada momento em que te vais, e chego mesmo a ter vontade de que não voltes nunca mais!
Convite triste Carlos Drummond de Andrade Meu amigo, vamos sofrer, vamos beber, vamos ler jornal, vamos dizer que a vida é ruim, meu amigo, vamos sofrer. Vamos fazer um poema ou qualquer outra besteira. Fitar por exemplo uma estrela por muito tempo, muito tempo e dar um suspiro fundo ou qualquer outra besteira. Vamos beber uísque, vamos beber cerveja preta e barata, beber, gritar e morrer, ou, quem sabe? beber, apenas. Vamos xingar a mulher, que está envenenando a vida com seus olhos e suas mãos e o corpo que tem dois seios e tem um umbigo também. Meu amigo, vamos xingar o corpo e tudo que é dele e que nunca será alma. Meu amigo, vamos cantar, vamos chorar de mansinho e ouvir muita vitrola, depois embriagados vamos beber mais outros sequestros (o olhar obsceno e a mão idiota) depois vomitar e cair e dormir.
Penetrália Olavo Bilac Falei tanto de amor!...de galanteio, Vaidade e brinco, passatempo e graça, Ou desejo fugaz, que brilha e passa No relâmpago breve com que veio... O verdadeiro amor, honra e desgraça, Gozo ou suplício, no íntimo fechei-o: Nunca o entreguei ao público recreio, Nunca o expus indiscreto ao sol da praça. Não proclamei os nomes, que baixinho, Rezava... E ainda hoje, tímido, mergulho Em funda sombra o meu melhor carinho. Quando amo, amo e deliro sem barulho: E quando sofro, calo-me e definho Na ventura infeliz do meu orgulho.
Insônia Paulo Mendes Campos A lâmpada acesa enxerga a noite toda apagada. A chuva conta nos canos a história das telhas velhas. O soalho e os móveis conversam nos cantos, aos estalidos. Meu pulso soma dez tocos de cigarro no cinzeiro. Teu nome tem só seis letras. Li três livros de uma vez.
No coração talvez José Saramago No coração, talvez, ou diga antes: Uma ferida rasgada de navalha, Por onde vai a vida, tão mal gasta. Na total consciência nos retalha. O desejar, o querer, o não bastar, Enganada procura da razão Que o acaso de sermos justifique, Eis o que dói, talvez no coração.
Hilda Hilst A minha Casa é guardiã do meu corpo E protetora de todas as minhas ardências E transmuta em palavra Paixão e veemência E minha boca se faz fonte de prata Ainda que eu grite à Casa que só existo Para sorver a água da tua boca. A minha Casa, Dionísio, te lamenta E manda que eu te pergunte assim de frente: A uma mulher que canta ensolarada E que é sonora, múltipla e argonauta Por que recusas amor e permanência?
O “interesse público” é reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública de questões privadas e a confissões de sentimentos privados (quanto mais íntimos, melhor). BAUMAN, "Modernidade líquida", p. 46.
Variações em tom menor Eugenio de Andrade Para jardim te queria. Te queria para gume ou o frio das espadas. Te queria para lume. Para orvalho te queria sobre as horas transtornadas. Para a boca te queria. Te queria para entrar e partir pela cintura. Para barco te queria. Te queria para ser canção breve, chama pura.
Do desejo Hilda Hilst I Porque há desejo em mim, é tudo cintilância. Antes, o cotidiano era um pensar alturas Buscando Aquele Outro decantado Surdo à minha humana ladradura. Visgo e suor, pois nunca se faziam. Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo Tomas-me o corpo. E que descanso me dás Depois das lidas. Sonhei penhascos Quando havia o jardim aqui ao lado, Pensei subidas onde não havia rastros. Extasiada, fodo contigo Ao invés de ganir diante do Nada. II Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras. Que desenhos e rictus na tua cara. Como os frisos veementes dos tapetes antigos. Que sombrio te tornas se repito O sinuoso caminho que persigo: um desejo Sem dono, um adorar-te vívido mas livre. E que escura me faço se abocanhas de mim Palavras e resíduos. Me vêm fomes Agonias de grande espessuras, embaçadas luas Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te. Cordura. Crueldade. III Colada à tua boca a minha desordem. O meu vasto querer. O incompossível se fazendo ordem. Colada a tua boca, mas descom
Poema Manoel de Barros A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado e chorei. Sou fraco para elogios.