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Lygia Fagundes Telles


Quando acordei, vi um diabinho montando no meu peito e outro no teto, dependurado no lustre. Coçava o ouvido com o rabo. Olhei para um, olhei para outro e não senti nem medo nem curiosidade, não senti nada, absolutamente nada. Ausência de emoção de qualquer espécie, o oco. Inerte, branca, fiquei olhando e meu olhar era exaurido como um sol apagado, só memória do outro sol mas sem nostalgia. Sem sofrimento. O diabinho mais próximo viu minha indiferença e ficou de pé no meu peito, se desmanchando em caretas para me impressionar. Não me impressionei: tinha chegado o fim do amor e desse incêndio não restara pedra sobre pedra, osso sobre osso, Roma de trás para diante com letra por letra queimada e reduzida a carvão. Ora, que me importa, eu disse. Vocês aí, que me importa. Rolei a cabeça no travesseiro e minha cabeça era opaca sem o gorro de pedras fulgurantes que durou enquanto durou a aventura. Fiquei olhando a parede vazia, os olhos também vazios. Quando os abri de novo, os diabinhos já tinham ido embora, podia imaginá-los murchos, de rabo entre as pernas, saindo em fila do quarto. Perdi meus demônios, pensei. Infernizada, eu poderia voltar à luta, reagir na cólera e quem sabe então a esperança, ei! onde é que vocês estão? chamei-os. Voltem, pelo amor de Deus, não me abandonem, voltem! A janela se abriu e o vento espalhou o punhado de cinza fria que restara no meu peito. O cheiro de enxofre foi desaparecendo.

Comentários

Anônimo disse…
Fantástico...

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