Agendas
Veríssimo
Obrigado pelas agendas, gente. Não precisava tantas, mas tudo bem.
Gosto de ganhar agendas. Elas trazem um ar de otimismo e confiança no futuro. E de certeza implícita que eu vou estar vivo e ativo pelo menos durante mais um ano – e um mês, já que todas incluem janeiro do ano seguinte. Obrigado pela força, gente.
As agendas se dividem em dois tipos. As que existem simplesmente para nos organizarmos e não perdermos a hora, e só nos dizem a que dias da semana correspondem os dias do mês e, vá lá, quando cai o Carnaval, e as que nos tratam como recém-chegados ao mundo. Para essas, cada passagem de ano é um renascimento.
Elas são nossos manuais de sobrevivência, com tudo de que precisamos saber sobre o Tempo e o Universo para nos situarmos neles no novo ano, com espaço para anotações. Já conhecemos o lugar, inclusive de outras agendas, mas não importa. As informações repetidas são uma forma de nos assegurar que tudo continua como era no ano passado e podemos recomeçar a vida do básico, que não mudou. A capital da Malásia (código DDI: 60, moeda: ringgit) continua sendo Kuala Lumpur, que continua à mesma distância de Bangkok, e uma légua de sesmaria continua equivalendo a 6,6 mil metros. E, por mais que tentasse, a Terra não conseguiu diminuir seus 12.760 quilômetros de diâmetro do Equador. Elas nos dizem tudo isso, e também a data do Carnaval.
Algumas informações precisam ser atualizadas de ano para ano, no entanto. Se é certo que a conversão de quilogramas para libras não vai mudar num futuro previsível, não se pode dizer o mesmo do nome da moeda do Brasil, que obriga os redatores de agendas a viver em alerta. Gosto de agendas com mapas e numa das que recebi este ano os mapas estavam devidamente atualizados – todos os novos países da África com seus nomes certos, por exemplo – mas um cartógrafo desafiador se recusou a trocar o nome Leningrado por São Petersburgo, na certa confiando que a História ainda dará uma reviravolta e ele só teria que trocar de novo.
Coisas como tabelas de conversões e códigos telefônicos são mais ou menos óbvias, mas que outras informações dar numa agenda depende da inspiração de cada editor e dos seus critérios sobre o que é importante para nos integrar no mundo prático, que é o mundo das agendas. Saber quais são os feriados oficiais de todos países da Terra pode ser importante. Vá você chegar ao Açafrão sem saber que é o Dia do Bode Sagrado, quando fecha tudo. Mas eu preciso mesmo saber o índice pluviométrico de Sumatra nos últimos 50 anos? Algumas agendas não se limitam a dar as informações sumárias sobre o dia que o próprio dia seria obrigado a dar sob interrogatório inimigo: nome e número. Muitas dão o nome do dia em várias línguas, para enfatizar o seu caráter internacional.
Informam, por exemplo, que o dia 14 de maio, além de ser sexta, friday, viernes, vendredi da 19ª semana, é o 134º dia do ano. Outras, querendo personalizar ainda mais a informação, incluem o nome do santo do dia, o que tem ajudado muito na escolha de nomes para filhos. Os nascidos em 14 de maio são do dia de São Matias, e antigamente isso não seria apenas uma sugestão de nome, seria quase uma ordem. Felizmente, meus pais não consultaram nenhuma agenda para escolher meu nome e eu não me chamo nem Cosme nem Damião, o que teria mudado tudo.
Como são muitas as agendas e só posso usar uma por ano, resistindo à tentação de ficar com todas e planejar várias vidas clandestinas em loucos anos paralelos, decidi ficar sempre com a que traz, além das tabelas e dos mapas, as fases da lua. Nem todos os editores de agenda se dão conta da importância de se saber exatamente quando é a próxima lua cheia. Somos uma minoria de obsoletos, reconheço. Românticos e lobisomens. Mas temos nossos direitos.
Veríssimo
Obrigado pelas agendas, gente. Não precisava tantas, mas tudo bem.
Gosto de ganhar agendas. Elas trazem um ar de otimismo e confiança no futuro. E de certeza implícita que eu vou estar vivo e ativo pelo menos durante mais um ano – e um mês, já que todas incluem janeiro do ano seguinte. Obrigado pela força, gente.
As agendas se dividem em dois tipos. As que existem simplesmente para nos organizarmos e não perdermos a hora, e só nos dizem a que dias da semana correspondem os dias do mês e, vá lá, quando cai o Carnaval, e as que nos tratam como recém-chegados ao mundo. Para essas, cada passagem de ano é um renascimento.
Elas são nossos manuais de sobrevivência, com tudo de que precisamos saber sobre o Tempo e o Universo para nos situarmos neles no novo ano, com espaço para anotações. Já conhecemos o lugar, inclusive de outras agendas, mas não importa. As informações repetidas são uma forma de nos assegurar que tudo continua como era no ano passado e podemos recomeçar a vida do básico, que não mudou. A capital da Malásia (código DDI: 60, moeda: ringgit) continua sendo Kuala Lumpur, que continua à mesma distância de Bangkok, e uma légua de sesmaria continua equivalendo a 6,6 mil metros. E, por mais que tentasse, a Terra não conseguiu diminuir seus 12.760 quilômetros de diâmetro do Equador. Elas nos dizem tudo isso, e também a data do Carnaval.
Algumas informações precisam ser atualizadas de ano para ano, no entanto. Se é certo que a conversão de quilogramas para libras não vai mudar num futuro previsível, não se pode dizer o mesmo do nome da moeda do Brasil, que obriga os redatores de agendas a viver em alerta. Gosto de agendas com mapas e numa das que recebi este ano os mapas estavam devidamente atualizados – todos os novos países da África com seus nomes certos, por exemplo – mas um cartógrafo desafiador se recusou a trocar o nome Leningrado por São Petersburgo, na certa confiando que a História ainda dará uma reviravolta e ele só teria que trocar de novo.
Coisas como tabelas de conversões e códigos telefônicos são mais ou menos óbvias, mas que outras informações dar numa agenda depende da inspiração de cada editor e dos seus critérios sobre o que é importante para nos integrar no mundo prático, que é o mundo das agendas. Saber quais são os feriados oficiais de todos países da Terra pode ser importante. Vá você chegar ao Açafrão sem saber que é o Dia do Bode Sagrado, quando fecha tudo. Mas eu preciso mesmo saber o índice pluviométrico de Sumatra nos últimos 50 anos? Algumas agendas não se limitam a dar as informações sumárias sobre o dia que o próprio dia seria obrigado a dar sob interrogatório inimigo: nome e número. Muitas dão o nome do dia em várias línguas, para enfatizar o seu caráter internacional.
Informam, por exemplo, que o dia 14 de maio, além de ser sexta, friday, viernes, vendredi da 19ª semana, é o 134º dia do ano. Outras, querendo personalizar ainda mais a informação, incluem o nome do santo do dia, o que tem ajudado muito na escolha de nomes para filhos. Os nascidos em 14 de maio são do dia de São Matias, e antigamente isso não seria apenas uma sugestão de nome, seria quase uma ordem. Felizmente, meus pais não consultaram nenhuma agenda para escolher meu nome e eu não me chamo nem Cosme nem Damião, o que teria mudado tudo.
Como são muitas as agendas e só posso usar uma por ano, resistindo à tentação de ficar com todas e planejar várias vidas clandestinas em loucos anos paralelos, decidi ficar sempre com a que traz, além das tabelas e dos mapas, as fases da lua. Nem todos os editores de agenda se dão conta da importância de se saber exatamente quando é a próxima lua cheia. Somos uma minoria de obsoletos, reconheço. Românticos e lobisomens. Mas temos nossos direitos.
Comentários
- hein? - ele abre os olhos.
- escuta, tenha calma, chegou a hora...
bruce tenta sentar-se, atrapalha-se nos gentos por estar acordado fora da cama, apóio sua cabeça no meu braço, lhe digo firme:
- escuta, tenha calma, chegou a hora...
- eu sei, percebi; quando peguei aquela trilha esburacada que veio dar aqui, senti que a coisa estava breve a acontecer, entende?, eu poderia ter pego a estrada principal, lisa, bem pavimentada, e poderia ter chegado amanhã à tarde, mas quando apareceu a trilha, pensei: porque não vou logo por aqui e não precipito de uma vez com tudo?
- foi melhor, sim, bruce... agora você já sabe desse meu paradeiro, aqui, e estamos os dois prontos, não há mais nada a premeditar, a suspender, a avaliar...
- sim, chegou a hora, eu sei, e é melhor que já esteja clareando, olha o céu, a luz...
- vamos, então...?
- vamos...
quando acordamos deveria ser o início da tarde. o sol tomava toda área de serviço. reparei que nós dois suávamos muito. então tocou o telefone (...)'.
de harmada, joão gilberto noll
mario
http://telasmarioteixeira.blogspot.com/
( a ) a paródia;
( b ) o lirismo;
( c ) a metáfora;
( d ) o humor;
( e ) o diálogo.