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Fernando Pessoa

Num meio-dia de fim de primavera,
Eu tive um sonho como uma fotografia.
Eu vi Jesus Cristo descer à Terra.
Ele veio pela encosta de um monte,
Mas era outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva,
A arrancar flores para deitar fora,
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Ele tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir-se
De segunda pessoa da trindade.
Num dia que Deus estava dormindo,
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi até a caixa dos milagres e roubou três:
Com o primeiro,
Ele fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido;
Com o segundo,
Ele se criou eternamente humano e menino;
E com o terceiro,
Ele criou um cristo eternamente na cruz,
E deixou-o pregado na cruz que há no céu,
E que serve de modelo às outras.
Depois ele fugiu para o sol,
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje ele vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita, de riso natural,
Limpa o nariz com o braço direito,
Chapinha nas poças d'água,
Colhe as flores, gosta delas, esquece...
Atira pedra aos burros,
Colhe as frutas nos pomares,
E foge a chorar e a gritar dos cães.
Só porque sabe que elas não gostam,
E que toda gente acha graça,
00Ele corre atrás das raparigas que levam as bilhas na cabeça,
E levanta-lhes a saia.
A mim, ele me ensinou tudo.
Ele me ensinou a olhar para as coisas,
Ele me aponta todas as cores que há nas flores,
E me mostra como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão e olha devagar pra elas.
Damo-nos tão bem um com outro na companhia de tudo,
Que nunca pensamos um no outro.
Vivemos juntos os dois, como um acordo íntimo.
Como a mão direita, e a esquerda.
Ao anoitecer, nós brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa.
Graves, como convém a um Deus, e a um poeta.
Como se cada pedra fosse todo o universo,
E fosse um perigo muito grande deixa-la cair no chão.
Depois eu lhe conto histórias das coisas só dos homens.
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ele ri dos reis, e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras e dos comércios.
Depois ele adormece,
E eu o levo no colo para dentro da minha casa,
Deito-o na minha cama,
Despindo-o lentamente,
Como seguindo um ritual todo humano e todo materno,
Até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma.
Às vezes ele acorda de noite,
Brinca com meus sonhos,
Vira uns de perna pro ar,
Pões uns por cima dos outros,
E bate palma sozinho,
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer filhinho,
Se0ja eu a criança, o mais pequeno,
Pega-me tu ao colo,
E leva-me para dentro da tua casa,
Deita-me na tua cama,
Despe o meu ser,
Cansado e humano,
Conta-me histórias,
Caso eu acorde para eu tornar a adormecer
E dá-me sonhos teus
Para eu brincar.

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