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Mostrando postagens de junho, 2005
Para o Fer: “O inferno dos vivos não é algo que vai existir: se existe, já está aqui, o inferno de nossa vida cotidiana, formado pelo fato de vivermos juntos. Há duas formas de suportá-lo. A primeira é a que muitos acham fácil: aceitar o inferno e tornar-se parte dele, até não o ver mais. A segunda é arriscada e exige constante atenção e aprendizado: no meio do inferno procurar e saber reconhecer o que não é inferno, fazê-lo durar, dar-lhe espaço”. Cidades Invisíveis, Italo Calvino
Hilda Hilst Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua de estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo. Que o olhar não se perca nas tulipas Pois formas tão perfeitas de beleza Vêm do fulgor das trevas. E o meu Senhor habita o rutilante escuro De um suposto de heras em alto muro. Que este amor só me faça descontente E farta de fadigas. E de fragilidades tantas Eu me faça pequena. E diminuta e tenra Como só soem ser aranhas e formigas. Que este amor só me veja de partida.
XLII - Passou a diligência Alberto Caeiro Passou a diligência pela estrada, e foi-se; E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia. Assim é a ação humana pelo mundo fora. Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos; E o sol é sempre pontual todos os dias.
Eu bem que tento não postar sempre os mesmos autores. Mas como não escolher Clarice Lispector? a Chegando em casa, não conseguia ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei mais ainda indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, e achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.
Despedida Cecília Meirelles Por mim, e por vós, e por mais aquilo que está onde as outras coisas nunca estão, deixo o mar bravo e o céu tranqüilo: quero a solidão. Meu caminho é sem marcos nem paisagens. E como o conheces? - me perguntarão. - Por não ter palavras, por não ter imagens. Nenhum inimigo e nenhum irmão. Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada. Viajo sozinha com o meu coração. Não ando perdida, mas desencontrada. Levo o meu rumo na minha mão. A memória voou da minha fronte. Voou meu amor, minha imaginação... Talvez eu morra antes do horizonte. Memória, amor e o resto onde estarão? Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra. (Beijo-te, corpo meu, todo desilusão! Estandarte triste de uma estranha guerra...) Quero solidão.
Noite carioca Ana C. César Diálogo de surdos, não: amistoso no frio. Atravancos na contramão. Suspiros no Contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta Do mundo: essa que não tem nenhum segredo.
Mater dolorosa Adélia Prado (...) Uma vez fizemos piquenique, ela fez bolas de carne pra gente comer com pão. Lembro a volta do rio e nós na areia. Era domingo, ela estava sem fadiga e me respondia com doçura. Se for só isso o céu, está perfeito.
Fanatismo Florbela Espanca Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer razão do meu viver, Pois que tu és já toda a minha vida! Não vejo nada assim enlouquecida... Passo no mundo, meu Amor, a ler No misterioso livro do teu ser A mesma história tantas vezes lida! "Tudo no mundo é frágil, tudo passa..." Quando me dizem isto, toda a graça Duma boca divina fala em mim! E, olhos postos em ti, digo de rastros: "Ah! Podem voar mundos, morrer astros, Que tu és como Deus: Princípio e Fim!..."
Alberto Caeiro Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra cousa todos os dias são meus. (...)
Para um amor na rua Elisa Lucinda Meu amor, vem pra casa que ouvi dizer que vai estourar a guerra Nostradamus previu Raimunda, nega Raimunda confirmou Por favor, ponha os pés na terra Chão firme cama da gente ouvi dizer que vai estourar a guerra. Você que é mundano convicto você que erra vai argumentar que não há perigo e o escambau que é apenas o "bicho" internacional. Vai confundir tudo com show vai dizer que tem Prince, Rock n'roll Gun's N'Roses e talvez Gal; É mau, meu bem tem também Sadam, Bushes e mesquinharias Vem pra casa guardar num cofre sua ingenuidade vem proteger da maldade sua fotografia. Aqui fiz cuscuz farofa e feijão fraldinho aqui pintei filosofia, comigo-ninguém-pode espada de São Jorge, jasmim, arruda, carinho. Tudo anti-míssil tudo bruxaria anti-crueldade bélica Lá fora alguns meninos querem experimentar a potência de seus terríveis brinquedos. Não tenha medo vem pra casa sem nem telefonar aqui tem ar, poesia, fé e tudo que a alegria da alma e
Como se chama Clarice Lispector Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto - como se chama o que sinto? Uma pessoa de quem não se gosta mais e que não gosta mais da gente - como se chama essa mágoa e esse rancor? Estar ocupada, e de repente parar por ter sido tomada por uma desocupação beata, milagrosa, sorridente e idiota - como se chama o que se sentiu? O único modo de chamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com a própria pergunta. Qual é o nome? e é este o nome.
Cecília Meirelles Tenho fases como a lua. Fases de andar escondida, fases de vir para a rua... Perdição da minha vida! Perdição da vida minha! Tenho fases de ser tua, tenho outras de ser sozinha. Fases que vão e que vêm, no secreto calendário que um astrólogo arbitrário inventou para meu uso. E roda a melancolia Seu interminável fuso! Não me encontro com ninguém (tenho fases, como a lua...) No meu dia de alguém ser meu Não é dia de eu ser sua... E, quando chega esse dia, O outro desapareceu... *** Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar; - depois, abri o mar com as mãos, para o meu sonho naufragar Minhas mãos ainda estão molhadas do azul das ondas entreabertas, e a cor que escorre de meus dedos colore as areias desertas. O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da água vai morrendo meu sonho, dentro de um navio... Chorarei quanto for preciso, para fazer com que o mar cresça, e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desapareça. Depois, tudo estará perf
Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel serrana bela, Mas não servia ao pai, servia a ela, Que a ela só por prêmio pretendia. Os dias na esperança de um só dia Passava, contentando-se com vê-la: Porém o pai usando de cautela, Em lugar de Raquel lhe deu a Lia. Vendo o triste pastor que com enganos Assim lhe era negada a sua pastora, Como se a não tivera merecido, Começou a servir outros sete anos, Dizendo: mais servira, se não fora Para tão longo amor tão curta a vida. Luís Vaz de Camões
“Nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares” Ana Cristina César Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse... ai que enjôo me dá o açúcar do desejo.
A moda dos casais trocados é relativamente nova. Quer dizer, desejar a mulher do próximo é antigo como os dez mandamentos; a novidade é o próximo gostar da idéia e desejar a sua mulher também. Luís Fernando Veríssimo
Dialética Vinícius de Moraes É claro que a vida é bela E a alegria, a única indizível emoção É claro que te acho linda Em ti bendigo o amor das coisas simples É claro que te amo E que tenho tudo pra ser feliz Mas acontece que eu sou triste...
Alberto Caeiro Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
Clarice Lispector O pior de mentir é que cria falsa verdade. (Não, não é tão óbvio como parece, não é truísmo; sei que estou dizendo uma coisa e que apenas não sei dizê-la do modo certo, aliás, o que me irrita é que tudo tem de ser "do modo certo", imposição muito limitadora). O que é mesmo que eu estava tentando pensar? Talvez isso: se a mentira fosse apenas a negação da verdade, então este seria um dos modos (negativos) de dizer a verdade. Mas a mentira pior é a mentira "criadora". (Não há dúvida: pensar me irrita, pois antes de começar a pensar eu sabia muito bem o que eu sabia).
Ainda é o melhor que eu já li sobre namorados. Afinal, hoje é 12 de junho. (Ao meu namorado, o de sempre e o mais verdadeiro: eu te amo). Aos namorados do Brasil Carlos Drummond de Andrade Dai-me, Senhor, assistência técnica para eu falar aos namorados do Brasil. Será que namorado algum escuta alguém? Adianta falar a namorados? E será que tenho coisas a dizer-lhes que eles não saibam, eles que transformam a sabedoria universal em divino esquecimento? Adianta-lhes, Senhor, saber alguma coisa, quando perdem os olhos para toda paisagem, perdem os ouvidos para toda melodia e só vêem, só escutam melodia e paisagem de sua própria fabricação? Cegos, surdos, mudos - felizes! - são os namorados enquanto namorados. Antes, depois são gente como a gente, no pedestre dia-a-dia. Mas quem foi namorado sabe que outra vez voltará à sublime invalidez que é signo de perfeição interior. Namorado é o ser fora do tempo, fora de obrigação e CPF, ISS, IFP, PASEP, INPS. Os códigos, desarmados, retrocedem de su
Correspondência Ana C. César My dear, (...) Depois que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado, porque a emoção esfriou com a voz real. Ao pedir a ligação, meu coração queimava. E quando a gente falou era tão assim, você vendo TV e eu perto de bananas, tão sem estilo (como nas cartas). Você não acha que a distância e a correspondência alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do bosque)?
Ensinamento Adélia Prado Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é . A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo: "coitado, até essa hora no serviço pesado". Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente. Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.