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Mostrando postagens com o rótulo Nuno Júdice
Princípios Podíamos saber um pouco mais da morte. Mas não seria isso que nos faria ter vontade de morrer mais depressa. Podíamos saber um pouco mais da vida. Talvez não precisássemos de viver tanto, quando só o que é preciso é saber que temos de viver. Podíamos saber um pouco mais do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada sabemos do amor. Nuno Júdice
Gosto das mulheres que envelhecem, com a pressa das suas rugas, os cabelos caídos pelos ombros negros do vestido, o olhar que se perde na tristeza dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se nos cantos das salas, olham para fora, para o átrio que não vejo, de onde estou, embora adivinhe aí a presença de outras mulheres, sentadas em bancos de madeira, folheando revistas baratas. As mulheres que envelhecem sentem que as olho, que admiro os seus gestos lentos, que amo o trabalho subterrâneo do tempo nos seus seios. Por isso esperam que o dia corra nesta sala sem luz, evitam sair para a rua, e dizem baixo, por vezes, essa elegia que só os seus lábios podem cantar. Nuno Júdice
Amanhecer Nuno Júdice Ouço bater o teu coração nesta manhã em que uma luz de argila constrói o busto do tempo, que um dia descobrirás dentro de ti, e onde irás reconhecer um rosto outrora amado. Mas não esperes; o dia de hoje é o dia que desejas, e não é todas as manhãs que esta luz te abraça com o seu fulgor de ave, convidando-te a partir até ao fim da terra. Não precisas de levar contigo mais do que o sorriso que se abriu no instante em que o sol nasceu; e poderás enchê-lo com as palavras que tantas vezes esboçaste, sem as dizer, e agora fazem parte dos teus lábios como a flor, que pertencia ao caule de onde a cortei, para a deixar na mesa que ficará vazia.
Ausência Nuno Júdice Quero dizer-te uma coisa simples: a tua Ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não Magoa, que se limita à alma, mas que não deixa, Por isso, de deixar alguns sinais - um peso Nos olhos, no lugar da tua imagem, e Um vazio nas mãos, como se tuas mãos lhes Tivessem roubado o tacto. São estas as formas Do amor, podia dizer-te; e acrescentar que As coisas simples também podem ser complicadas, Quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade. Porém, é o sonho que me traz à tua memória; e a Realidade aproxima-te de ti, agora que Os dias que correm mais depressa, e as palavras Ficam presas numa refracção de instantes, Quando a tua voz me chama de dentro de Mim - e me faz responder-te uma coisa simples, Como dizer que a tua ausência me dói.
Distância Nuno Júdice Entro no teu quarto, como se entrasse no mar. Um temporal de perguntas enrola os teus cabelos. Lanças-te contra as ondas de um sonho antigo, e abres a porta da varanda para te sentares à cadeira do oriente, apanhando o vento da tarde. «Não te levantes, digo, e deixa que os teus olhos se libertem de sombra, depois de uma noite de amor, para me abrigarem da luz estéril da madrugada.» Mudas de posição, como se me tivesses ouvido; e o teu corpo enche-se de palavras, como se fosses a taça da estrofe.
Jogo  Nuno Júdice Eu, sabendo que te amo, E como as coisas do amor são difíceis, Preparo em silêncio a mesa do jogo,estendo as peças sobre o tabuleiro,disponho os lugares necessários para que tudo comece: as cadeiras uma em frente da outra, embora saiba que as mãos não se podem tocar, e que para além das dificuldades, hesitações, recuos ou avanços possíveis, só os olhos transportam, talvez uma hipótese de entendimento.É então que chegas, e como se um vento do norte entrasse por uma janela aberta, o jogo inteiro voa pelos ares, o frio enche-te os olhos de lágrimas, e empurras-me para dentro, onde o fogo consome o que resta do nosso quebra-cabeças.
Princípios Nuno Júdice Podíamos saber um pouco mais da morte. Mas não seria isso que nos faria ter vontade de morrer mais depressa. Podíamos saber um pouco mais da vida. Talvez não precisássemos de viver tanto, quando só o que é preciso é saber que temos de viver. Podíamos saber um pouco mais do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada sabemos do amor.