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Mostrando postagens de setembro, 2004
Entre vista 1 e 2 (ou aquilo que ainda não me perguntaram) (fragmentos) Elisa Lucinda - que o homem que habita o meu desejo e o lado mais nobre de minha cama-alma é o mesmo do meu sonho; - que estou muito acostumada comigo. E quase não brigamos; - que gosto de luta mas não gosto de briga; - que todos os beijos na boca são únicos; - que se eu passar mais de 24 horas num lugarejo com amor, viro nativa, avó, parteira e vizinha; - que ajo como se fosse viver eternamente e morrer amanhã; - que sou chegada num trovão e a porção de delicadezas que pode causar sobre um poema. - que o medo é um defeito físico. Paralisa.
Era uma menina que gostava de inventar uma explicação para cada coisa - explicação é uma frase que se acha mais importante do que a palavra. Ela achava o mundo do lado de fora um pouquinho complicado. Se cada um simplificasse as coisas, o mundo podia ser mais fácil, ela pensava. Então tentava simplificar o mundo dentro da sua cabeça - simplificar é quando em vez de pensar em 4/8 a pessoa pensa logo em 1/2. Um meio, quando é escrito em números, sempre quer dizer "metade". Mas quando é escrito em letras, pode também querer dizer "um jeito". Existem vários jeitos de entender o mundo. Ela tentava explicar de um jeito que ele ficasse mais bonito. Essa menina pensa que é filósofa, as pessoas falavam - filósofo é quem, em vez de ver televisão, prefere ficar pensando pensamentos. De tanto que a menina explicava, as pessoas às vezes se irritavam ( irritação é um alarme de carro que dispara bem no meio de seu peito) e terminavam indo embora, deixando a menina lá, explican
O olimpo da mulheres prendadas Jô Hallack ( www.02neuronio.com.br ) Tudo começou com um bolo de cenoura. Ficou ótimo, porém, com jeito de solado. Suas amigas e sua mãe lhe garantiram que bolo de cenoura sempre fica com jeito de solado. E você resolveu ir além. Com um objetivo definido: chegar ao olimpo das pessoas prendadas. Seres humanos elevados que sabem fazer até o trivial. E por que isso? Porque você surtou e quer ser do lar. Acontece nas melhores famílias. Você, oprimida por ter que fazer jornada dupla de trabalho - isto é, trabalhar na sua firma e trabalhar na sua casa... oprimida por ter que ser inteligente, criativa, empreendedora e conquistar o mundo (oprimida por você mesma, bom dizer) - resolve escapar pelos fundos. E aprender a cozinhar. E não vale aquelas picaretagens refinadas não! Sim, você sabe até fazer atum com coscouz marroquino. Mas a mulherzinha que grita dentro de você diz que você tem que ser uma cozinheira ordinária. No melhor dos sentidos. E fazer feijão
(...) Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. A té cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. (...) Clarice Lispector
Samba-canção Ana Cristina Cesar Tantos poemas que perdi. Tantos que ouvi, de graça, pelo telefone – taí, eu fiz tudo pra você gostar, fui mulher vulgar, meia-bruxa, meia-fera, risinho modernista arranhando na garganta, malandra, bicha, bem viada, vândala, talvez maquiavélica, e um dia emburrei-me, vali-me de mesuras era comércio, avara, embora um pouco burra, porque inteligente me punha logo rubra, ou ao contrário, cara pálida que desconhece o próprio cor-de-rosa, e tantas fiz, talvez querendo a glória, a outra cena à luz de spots, talvez apenas teu carinho, mas tantas, tantas fiz...
Teu corpo seja brasa Alice Ruiz teu corpo seja brasa e o meu a casa que se consome no fogo um incêndio basta pra consumar esse jogo uma fogueira chega pra eu brincar de novo
Verdade Carlos Drummond de Andrade A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
"Deve-se apresentar ao sujeito o seu próprio dito, o mesmo que dizer 'coma o que disse', pois não se come apenas livros como no Apocalipse de São João; também se come as próprias palavras em análise, ainda que não sejam um prato saboroso". Miller, "Diagnóstico e localização subjetiva". In: Lacan Elucidado.
Aceitação Cecília Meirelles É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens E sentir passar as estrelas Do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos. É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano E assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas, Que desejar que apareças, criando com teu simples gesto O sinal de uma eterna esperança. Não me interessam nem mais as estrelas, nem as formas do mar, nem tu. Desenrolei de dentro do tempo a minha canção: Não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.
Pronominais Oswald de Andrade Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro
"A posição ética tradicional, metafísica, política, que permitia às pessoas orientar seu pensamento, está em falta. O excesso se tornou a norma". Charles Melman, psicanalista. Revista Isto É, 22/09/04.
Emergência Mário Quintana Quem faz um poema abre uma janela. Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela. Por isso é que os poemas têm ritmo - para que possas profundamente respirar. Quem faz um poema salva um afogado.
Os teus pés Pablo Neruda Quando não posso contemplar teu rosto, contemplo os teus pés.Teus pés de osso arqueado, teus pequenos pés duros. Eu sei que te sustentam e que teu doce peso sobre eles se ergue. Tua cintura e teus seios, a duplicada púrpura dos teus mamilos, a caixa dos teus olhos que há pouco levantaram vôo, a larga boca de fruta, tua rubra cabeleira, pequena torre minha. Mas se amo os teus pés é só porque andaram sobre a terra e sobre o vento e sobre a água, até me encontrarem.
Aos apaixonados Rubem Alves Dedico esta crônica aos apaixonados, mesmo sabendo que servirá para nada: é inútil falar aos apaixonados. Os apaixonados só ouvem poemas e canções. A paixão, experiência insuperável de prazer e alegria, pelo fato mesmo de ser uma experiência insuperável de prazer e alegria, coloca o apaixonado fora dos limites da razão. Todo apaixonado é tolo. Pode ser que ele escute a fala da razão. Escuta mas não acredita. Diz ele: "o meu caso é diferente!" Tolo mesmo é quem tenta argumentar com os apaixonados. Começa, pois, assim, minha inútil meditação com um verso terrível de T. S. Eliot. Ele está rezando. Ele sabe que somente Deus tem poder para lidar com a loucura da paixão. Ele reza assim: livra-me da dor da paixão não satisfeita e da dor muito maior da paixão satisfeita. Todo mundo sabe que paixão não satisfeita dói. Mas poucos sabem que a paixão só existe se não for satisfeita. A paixão é fome. Ela só floresce na ausência do objeto amado. Mais precisament
Toco sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você. Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas se encontram e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um per
Teu nome Vinícius de Moraes Teu nome, Maria Lúcia Tem qualquer coisa que afaga Como uma lua macia Brilhando à flor de uma vaga. Parece um mar que marulha De manso sobre uma praia Tem o palor que irradia A estrela quando desmaia. É um doce nome de filha É um belo nome de amada Lembra um pedaço de ilha Surgindo de madrugada. Tem um cheirinho de murta E é suave como a pelúcia É acorde que nunca finda É coisa por demais linda Teu nome, Maria Lúcia...
Late Ilusão Elisa Lucinda Em noite de lua cheia geme ao meu lado o meu cão acabado de chegar late ilusões ao meu ouvido e meu sentido diz que ele veio pra ficar Mas a vida passa e vira páginas da folhinha o que era cheia e domingo foi minguando em segundas e terças e meu homem, minha besta voltou novo e repetido como se fosse ficar até sexta três dias de ele chegando de madrugada três dias de ele nadando na minha água Conversas de homem e mulher beijo na boca tirar a roupa novos latidos de ilusão no meu duvido meu homem partiu na derradeira manhã todo agradecido dos momentos de amor que uivou comigo eu fiquei lua sozinha no céu com aquela saudade amarela e ele na terra cantando latindo partindo uivando pra ela.
O gato e o pássaro Jacques Prevért Uma cidade escuta desolada O canto de um pássaro ferido É o único pássaro da cidade E foi o único gato da cidade Que o devorou pela metade E o pássaro pára de cantar O gato pára de ronronar E de lamber o focinho E a cidade prepara para o pássaro Maravilhosos funerais E o gato que foi convidado Segue o caixãozinho de palha Em que deitado está o pássaro morto Levado por uma menina Que não pára de chorar Se soubesse que você ia sofrer tanto Lhe diz o gato Teria comido ele todinho E depois teria te dito Que tinha visto ele voar Voar até o fim do mundo Lá onde o longe é tão longe Que de lá não se volta mais Que você teria sofrido menos Sentiria apenas tristeza e saudades Não se deve deixar as coisas pela metade.
Tecendo a manhã João Cabral de Melo Neto I Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. II E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Tarde - LXIX Pablo Neruda Talvez não ser é ser sem que tu sejas, sem que vás cortando o meio-dia como uma flor azul, sem que caminhes mais tarde pela névoa e pelos tijolos, sem essa luz que levas na mão que talvez outros não verão dourada, que talvez ninguém soube que crescia como a origem vermelha da rosa, sem que sejas, enfim, sem que viesses brusca, incitante, conhecer a minha vida, rajada de roseira, trigo do vento, e desde então sou porque tu és, e desde então és, sou e somos, e por amor serei, serás, seremos.
"Você não entende porque a gente chora diante da beleza? A resposta é simples. Ao contemplar a beleza, a alma faz uma súplica de eternidade. Tudo o que a gente ama a gente deseja que permaneça para sempre. Mas tudo o que a gente ama existe sob a marca do tempo. Tudo é efêmero. Efêmero é o por do sol, efêmera é a canção, efêmero é o abraço, efêmera é a casa construída para o resto da vida. A gente chora diante da beleza porque a beleza é uma metáfora da própria vida." Rubem Alves (embora eu não goste de Rubem Alves.)
Viagem Miguel Torga Aparelhei o barco da ilusão E reforcei a fé de marinheiro. Era longe o meu sonho, e traiçoeiro O mar... (Só nos é concedida Esta vida Que temos; E é nela que é preciso Procurar O velho paraíso Que perdemos). Prestes, larguei a vela E disse adeus ao cais, à paz tolhida. Desmedida, A revolta imensidão Transforma dia a dia a embarcação Numa errante e alada sepultura... Mas corto as ondas sem desanimar. Em qualquer aventura O que importa é partir, não é chegar. P.S.: Não nos curamos nunca de nosso inconsciente. Na teoria é lindo, poético. Na prática é uma merda. "Então você quer dizer que você faz tudo, e nunca é o suficiente?". Não, eu não queria dizer isso. Mas eu disse, agora eu que me vire.
Um Beijo Vinícius de Moraes Um minuto o nosso beijo / Um só minuto; no entanto Nesse minuto de beijo / Quantos segundos de espanto! Quantas mães e esposas loucas / Pelo drama de um momento Quantos milhares de bocas / Uivando de sofrimento! Quantas crianças nascendo / Para morrer em seguida Quanta carne se rompendo / Quanta morte pela vida! Quantos adeuses efêmeros / Tornados o último adeus Quantas tíbias, quantos fêmures / Quanta loucura de Deus! Que mundo de mal-amadas / Com as esperanças perdidas Que cardume de afogadas / Que pomar de suicidas! Que mar de entranhas correndo / De corpos desfalecidos Que choque de trens horrendo / Quantos mortos e feridos! Que dízima de doentes / Recebendo a extrema-unção Quanto sangue derramado / Dentro do meu coração! Quanto cadáver sozinho / Em mesa de necrotério Quanta morte sem carinho / Quanto canhenho funéreo! Que plantel de prisioneiros / Tendo as unhas arrancadas Quantos beijos derradeiros / Quantos mortos nas estradas!
"Minha aposta mais alta. Minha cama com coberta no sábado mais frio. Sabe quando as coisas estão certas? Pois é. Você. (eu poeta...)". E eu musa.
Mais uma tentativa. Vamos ver se dá pé. O certo é que eu tenho tido vontade de escrever, ou de copiar o que os outros escreveram e eu não teria capacidade, ou coragem. Vai ser bom pra mim. Até que não seja mais - mas acho que esse é o destino dos blogs: acabarem, um dia, empoeirados e velhos, esquecidos pela rede.