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Mostrando postagens de 2005
Feliz Ano Novo (escrito em 1996, mas atemporal) Arnaldo Jabor O ano de ver através do vidro o eclipse do sol contra a neblina pela janela da infância, o ano de ver as primeiras imagens de minha mãe, que era uma Greta Garbo linda com ombros altos e cabelo de coque "bomba atômica" e lábios vermelhos, o ano da coqueluche em que meu pai me levou de avião até 4.000 metros para curar a tosse entre nuvens, o ano de temer o quarto onde meus pais conceberiam minha irmã, o ano de olhar árvores, bichos e gente como se eu morasse fora do mundo (mistério que até hoje dura), o ano do medo de levar porrada nas ruas da infância, . o ano das pernas das mulheres, colunas altas e distantes (até hoje), o ano dos fantasmas do fundo do corredor, o ano do cachorro atropelado, o ano dos meninos se comendo de solidão, o ano de ficar olhando o vento no quintal, o ano dos formigueiros, o ano do sarampo e sua lâmpada vermelha, o ano da catapora, o ano da luz azul do quarto da pneumonia de minha irmã, o
Mais uma sobre as duas melhores coisas do mundo: a mulher e o garçom De Xico Sá. Numa mesa de bar, claro. Se não, não teria graça. Eu nem contaria. Confesso que bebi. Deus deveria parar o cronômetro, como um juiz de basquete, quando a vida não tivesse como locações a cama ou o boteco. Mas nada é tão justo assim nesse mundo. Sabemos. Numa mesa de bar. Exterior, calçada, noite. A nega indaga: “Por que será que garçom só decora nome de homem?” A nega é mulher de amigo, Jotabê Medeiros, compadre torcedor do glorioso Santos Futebol Clube. De mulher de amigo também não sei sequer o batismo, o sagrado nome. Vê se pode uma coisa dessas! Garçom só decora nome de homem? Arrisco uma tese, PhD de botequim que me prezo. Com ajuda da amiga Ana Weiss, linda mulher do lado. O bar é minha UFPE, minha universidade católica, meu doutorado da USP, minha filosofia, minha cachaça, minha cátedra, minha nota de rodapé, minha escolástica... Meu bar, meu mar... Desde o “Robertão 70”, onde eu bebia no Recife ao
De que lado você fica? De Leo Jaime. www.blonicas.zip.net Vamos supor que em sua rua tenha um supermercado e que você faça suas compras lá, regularmente. Já cumprimenta os funcionários, conhece as prateleiras, sabe que o preço não é o melhor mas como é próximo e tem bons produtos é um cliente fiel. Fiel até ser surpreendido com a notícia, espalhada aos quatro cantos do planeta, de que o gerente da loja resolveu tocar fogo em uma família de mendigos que tinha se mudado para a marquise do supermercado dias atrás. Pois é, todo mundo dormindo ele chega, sorrateiro, joga gasolina nos cobertores e ateia fogo, fazendo um churrasco daquela família que, aos olhos de todos, exibia sua miséria ali, de forma inconveniente, incomodando os usuários e espantando a freguesia. Isso mesmo, você não era a favor daquela família residir na frente daquela loja mas ficou horrorizado, com justiça, com a medida escabrosa que o seu gerente arranjou pra resolver o assunto. Qual sua atitude? Espera que a lei sej
Regras de etiqueta numa vídeo-locadora www.02neuronio.com.br . Agora vocês devem estar pensando: hum, essas meninas não tem mais o que falar e começaram a apelar. Nada disso. Fui numa vídeo-locadora na semana passada e me senti fazendo parte do mundo. Todo aquele vazio espiritual que sentia, aquele sentimento de falta de adaptação em relação ao mundo, angústia, melancolia, tudo isso desapareceu no momento em que coloquei os pés na Blockbuster. Me senti inteiramente normal. Mas percebi que o local tem um código de etiquetas próprio, que aprendi a muito custo. E é isso que divido, agora, com vocês. 1 - Não fique procurando filmes cult de diretores obscuros. Lembre-se que seu objetivo é sentir uma união com a raça humana. E nem estou falando do desejo de pegar um filme no Sudão. Mas é que sempre queremos pegar filmes inteligentes (mesmo que sejam americanos) para esbanjar nossa inteligência e sentir que crescemos interiormente depois do filme. Por que? Vá logo para a seção de lançamentos
Livro aberto (parte 2) Agora há pouco a Rede TV! promoveu um debate com Bruna Surfistinha, mediado por Luciana Gimenez e com participação de Ângela Bismarchi. Machado de Assis não apareceu. Ele ligou dizendo que não poderia ir por causa do trânsito infernal na Oscar Freire". . Do site www.kibeloko.blogspot.com
É um texto sobre um amor entre duas mulheres, mas poderia ser qualquer amor. . Agradecimentos De Milly Lacombe. (do site "Blônicas") Chegamos à hora dos agradecimentos. Trata-se do grande final, da apoteose dramática, do inevitável e dolorido exercício de lembrar por que nos apaixonamos. É o pente fino na relação, o inventário de tudo o que fomos, o último ato. Feito isso, podemos baixar as cortinas e dar o espetáculo por encerrado. Sofisticadamente, como se espera das paixões doces, verdadeiras, belas e sem futuro – aquelas que ocorrem em teatros vazios, mas que, nem por isso, devem ser menos aplaudidas. Daqui, da solidão desse palco em que me encontro agora, meus mais sinceros agradecimentos. Antes de mais nada, obrigada por ter me dado esse ingresso, por ter me recebido, me convidado a sentar e me deixado ficar. Obrigada por ter me lembrado que a vida pode ser mais divertida, mais intensa, mais musicada e florida. Obrigada pelas noites quentes, pelas cervejas geladas, pelo
Homens não querem sofrer www.02neuronio.com.br Todo mundo sabe que homens adoram negar. Negar que estão traindo, negar que esqueceram de um compromisso, negar que estão namorando...mas o que o que os homens mais gostam de negar é que estão sofrendo. Isso mesmo, eles têm pavor de sofrer! Não admitem que podem derramar uma lágrima por alguém. Aliás, eles nem sabem o que é chorar. Eu queria chorar por dois minutos, contados no relógio e depois acabou, disse um conhecido, que tinha acabado um namoro de cinco anos. Dois minutos, esse era o tempo razoável para o sofrimento por amor do rapaz. (...) E a gente sofre por meses. Fica mal quando fica com outro, afinal, tem o tempo da ressaca do coração partido. E nos achamos muito más, caso já tenhamos alguém em vista. Não sofram pela gente, eles dizem. Será que não seria melhor mesmo? Não sofrer, não chorar, não achar que o mundo vai acabar...mas daí a gente viraria homem. E não teria a menor graça.
Um amor tão bom Danuza Leão . Casados eles não pareciam ser - não um com o outro -, e aquele jantar cedo, num restaurante modesto, comum, era muito bom de se ver. Estavam sentados um em frente ao outro, e parecia claro que não iriam para a mesma casa depois do jantar, não dormiriam nem acordariam juntos. Por isso, talvez, tinham tanto a se dizer - e se diziam. Ela às vezes passava a mão na testa dele, afastando uma mecha de cabelo; daí a pouco ele devolvia o carinho e segurava a mão dela num gesto rápido, isso por cima dos pratos, sem que nada fosse fora de propósito nem inadequado, como nunca são os gestos que saem do coração. Não havia entre eles aquele clima de urgência que precede a ida a um motel, muito pelo contrário; parecia, isso sim, que eles haviam passado a tarde se amando e depois foram a um restaurante, daqueles em que não há risco de encontrar nenhum amigo, para ficarem juntos um pouco mais, o tempo que ainda tinham, sem inquietação, pelo prazer da companhia um do outro.
O amor acaba Paulo Mendes Campos O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse e
As meninas-chapinha Nina Lemos . Foi em um salão caro de bairro chique e tradicional de São Paulo_ o único lugar aberto para fazer a unha no feriado. De repente chegou uma menina. E outra. E mais outra. Todas bonitinhas nos seus menos de 20 anos (bem menos). Todas fofas. Aí comecei a reparar que eles tinham o cabelo liso por cima e meio cacheado por baixo. Todas as meninas do bairro tinham ido ao salão, que devem freqüentar toda semana, para alisar o cabelo. Todas as meninas entraram ali para saírem iguais. Se eu tivesse menos de 20 e morasse naquele bairro, talvez também fosse uma mina chapinha ou escova. Tudo para não ser diferente do grupo. Tudo para ser diferente de mim mesma. Se bem que, na minha época de escola, fui lá e raspei o cabelo máquina 2 e logo ganhei o apelido de Maria Alcina. Era horrível ser xingada na rua. Mas era ótimo ter orgulho de ser quem eu sou. Tinha algo muito de triste nas meninas chapinha. Elas são muito novas para perderem tanto tempo no cabeleireiro. Que
Do filme "Mar adentro". Tão lindo quanto o filme. Mar adentro, mar adentro, y en la ingravidez del fondo donde se cumplen los sueños, se juntan dos voluntades para cumplir un deseo. Un beso enciende la vida con un relámpago y un trueno, y en una metamorfosis mi cuerpo no es ya mi cuerpo; es como penetrar al centro del universo: El abrazo más pueril, y el más puro de los besos, hasta vernos reducidos en un único deseo: Tu mirada y mi mirada como un eco repitiendo, sin palabras: más adentro, más adentro, hasta el más allá del todo por la sangre y por los huesos. Pero me despierto siempre y siempre quiero estar muerto para seguir con mi boca enredada en tus cabellos.
Mothern , de novo. Tomara que elas não me processem. Quem mandou elas serem ótimas? Eu com as quatro eu com ela eu com ela nós por cima nós por baixo... Lembra dessa brincadeira? Depois de adulta, não parece sacanagem?
Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito. Manoel de Barros
Bonito demais. É um dos meus preferidos há muito, muito tempo... e ainda se chama "Psicanálise do açúcar". Psicanálise do açúcar João Cabral de Melo Neto O açúcar cristal, ou açúcar de usina, mostra a mais instável das brancuras; quem do Recife sabe direito o quanto, e o pouco desse quanto, que ela dura. Sabe o mínimo do pouco que o cristal se estabiliza cristal sobre o açúcar, por cima do fundo antigo, de mascavo, do mascavo barrento que se incuba; e sabe que tudo pode romper o mínimo em que o cristal é capaz de censura: pois o tal fundo mascavo logo aflora quer inverno ou verão mele o açúcar.
Os versos que te fiz Florbela Espanca Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda... Que a boca da mulher é sempre linda Se dentro guarda um verso que não diz! Amo-te tanto! E nunca te beijei... E nesse beijo, Amor, que eu te não dei Guardo os versos mais lindos que te fiz! *** Saudades Florbela Espanca Saudades! Sim... talvez... e porque não?... Se o nosso sonho foi tão alto e forte Que bem pensara vê-lo até à morte Deslumbrar-me de luz o coração! Esquecer! Para quê?...Ah! Como é vão! Que tudo isso, Amor, nos não importe. Se ele deixou beleza que conforte Deve-nos ser sagrado como o pão! Quantas vezes, Amor, já te esqueci, Para mais doidamente me lembrar, Mais doidamente me lembrar de ti! E quem dera que fosse sempre assim: Quanto menos quisesse recordar Mais a saudade andasse presa a mim!
Sentimental Carlos Drummond de Andrade Ponho-me a escrever teu nome com letras de macarrão. No prato, a sopa esfria, cheia de escamas e debruçados na mesa todos contemplam esse romântico trabalho. Desgraçadamente falta uma letra, uma letra somente para acabar teu nome! Está sonhando? Olhe que a sopa esfria! Eu estava sonhando... E há em todas as consciências, um cartaz amarelo: "Nesse país é proibido sonhar". *** Verbo Ser Carlos Drummond de Andrade Que vai ser quando crescer? Vivem perguntando em redor. Que é ser? É ter um corpo, um jeito, um nome? Tenho os três. E sou? Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito? Ou a gente só principia a ser quando cresce? É terrível, ser? Dói? É bom? É triste? Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas? Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R. Que vou ser quando crescer? Sou obrigado a? Posso escolher? Não dá para entender. Não vou ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser. Esquecer.
Eu não passo mal. As pessoas que passam mal Nina Lemos (site 2neurônio ) "Tô passando mal". Quem me conhece já deve ter ouvido essa frase algumas vezes. Isso porque, como bem definiu a Jô em um momento em que eu falei a frase... eu sou uma pessoa que passa mal. E essa é mais uma forma de divisão do mundo. As pessoas que passam mal geralmente são histéricas (hello, Freud). E sim, quase sempre são mulheres. Sofremos de tontura, confusão mental, pressão baixa, desmaios. Tudo sem motivo aparente, ou com motivos ridículos que pra gente fazem todo sentido. Nesta última vez em que falei a frase, eu estava em um show revival do Fellini, uma das bandas que eu mais amo no mundo. Estava cheio de gente do passado, pessoas de antigamente, passantes famosos, como o Paulo Ricardo de chapinha e o Marcelo Bonfá parecendo o Jon Bon Jovi. É ou não é motivo para passar mal? Nós estamos acostumados a sermos levados pela mão por pessoas para tomar um ar. Ou a ouvir a frase: "você quer sal?&q
Oferenda Itamar Assumpção Tenho mil segredos para te contar Abri todas as conchas do mar Dentro delas achei pérolas Com algumas te fiz um colar Um colar de pérolas Lisas e bem redondas Lindas bolas claras Contas de perder a conta Em todos os dedos você vai usar Anéis que eu mandei buscar Uns no fim do mundo três gemas em Minas Outros dez na Conchinchina meu amor É teu meu tesouro Ouro puro e lírios Meu amor eu juro Meu palácio com antúrios Peço pense devagar nessa oferenda Se recusas ou aceitas Essa oferenda Peço pense devagar Nessa oferenda Só não tens a vida toda Pra pensar.
Entusiasmada com meu comentário sobre sua excelente influência em minha vida, feito no post anterior, minha mãe saiu avidamente à busca de novidades para este blog. Olhaí o resultado. Eu falei, eu falei... MILÁGRIMAS Itamar Assumpção - Alice Ruiz Em caso de dor, ponha gelo Mude o corte do cabelo Mude como modelo Vá ao cinema, dê um sorriso Ainda que amarelo Esqueça seu cotovelo Se amargo for já ter sido Troque já este vestido Troque o padrão do tecido Saia do sério, deixe os critérios Siga todos os sentidos Faça fazer sentido A cada milágrimas sai um milagre Em caso de tristeza vire a mesa Coma só a sobremesa Coma somente a cereja Jogue para cima, faça cena Cante as rimas de um poema Sofra apenas, viva apenas Sendo só fissura, ou loucura Quem sabe casando cura Ninguém sabe o que procura Faça uma novena, reze um terço Caia fora do contexto, invente seu endereço A cada milágrimas sai um milagre Mas se apesar de banal Chorar for inevitável Sinta o gosto do sal Sinta o gosto do sal Gota a
Foi minha mãe quem me ensinou a gostar de Fernando Pessoa. Aliás, minha mãe me ensinou a gostar de milhões de coisas boas nessa vida. TABACARIA Álvaro de Campos (1928) Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. (...) (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) (...) Vivi, estudei, amei e até cri, E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); Talvez tenhas existido apenas, como um lagart
O seu santo nome Carlos Drummond de Andrade Não facilite com a palavra amor. Não a jogue no espaço, bolha de sabão. Não se inebrie com o seu engalanado som. Não a empregue sem razão acima de toda a razão ( e é raro). Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra. Não a pronuncie.
Carlos Drummond de Andrade O chão é cama para o amor urgente, amor que não espera ir para a cama. Sobre tapete ou duro piso, a gente compõe de corpo e corpo a úmida trama. E para repousar do amor, vamos à cama.
O amor e seus contratos Carlos Drummond de Andrade Tanto nas juras mais vivas como nos beijos mais longos em que perduram salivas de outras paixões ainda ativas, sopro de angolas e congos, eu sinto a turva incerteza (ai, ouro de tredas lavras) da enovelada surpresa que põe tanto de estranheza nos contratos que tu lavras. Por mais que no teu falar brilhe a promessa incessante até o mundo acabar e mesmo depois - diamante de mil prismas incendidos, amarga-me o pensamento de serem pactos fingidos e nos seus subentendidos não vi, amor, valimento. Experiência de escrituras, eu tenho. De que me serve? Após sofridas leituras de emendas e rasuras, no peito a dúvida ferve, se nos mais doutos cartórios de Londres, Londrina, Lavras para assuntos amatórios, teus itens são ilusórios, só palavras e palavras. As nulidades tamanhas que te invalidam o trato não sei se provêm de manhas ou de vistas mais estranhas. Serão talvez teu retrato gravado em vento ou em sonho como aéreo documento que nunca mais r
Uma das características que Rubem Braga exigia da mulher perfeita: "Que no verão seja assaltada por uma remota vontade de miar".
É um amor impossível o de peixe e pássaro. Nunca podem estar juntos. O pássaro morre afogado na água. O peixe morre afogado no ar. Depois, peixe e pássaro não têm mãos para amar. Não sei nada sobre o coração de peixe nem de pássaro. Penso que devem ter muita esperança. (Bartolomeu Campos Queiroz, em O Peixe e o Pássaro)
De quem é isso mesmo? Acho que da Regina Teixeira da Costa. (...) Quem é o neurótico? Alguém que enfrenta temerosamente as exigências da vida – e isto lhe suga a vitalidade, o consome, o cansa. Por isto suas escolhas são tímidas: não se encoraja a ousar muito. Para manter o equilíbrio na corda bamba em que atravessa a existência, busca o que é mais cômodo. Aquieta-se, e não sai à cata de novas e melhores formas. Espantado frente ao novo, devido à pobreza de seu repertório, ou por sua crônica falta de auto-confiança, ou por esperar sempre que se repitam as decepções, acaba se excluindo, ficando de fora ou deixando de fora. Deixa passar boas chances de estabelecer relações duradouras de boa qualidade: perde o bonde, deixa passar o cavalo arreado. Continua vagando, solitário, sentindo-se vazio, carente e sedento de contato. Nada satisfaz, nunca encontra o preenchimento pelo qual anseia. (...) Às vezes, pede ajuda: busca a análise, a psicoterapia – raramente não sem antes ter buscado um re
Uma revolta Clarice Lispector Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa como uma criança ao notar que mesmo no amor tem-se que ter bom senso e senso de medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa. PS: Já postei isso aqui? Não tenho mais paciência de procurar no arquivo inteiro deste blog. Fica combinado que quando eu publicar de novo alguma coisa, é porque gostei de novo dela.
Por não estarem distraídos Clarice Lispector Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo er
Hipótese Carlos Drummond de Andrade E se Deus é canhoto e criou com a mão esquerda? Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.
Voltando de outra temporada em Goiânia. E vendo tudo alegrinho de novo. Momento Adélia Prado Enquanto eu fiquei alegre, permaneceram um bule azul com um descascado no bico, uma garrafa de pimenta pelo meio, um latido e um céu limpidíssimo com recém-feitas estrelas. Resistiram nos seus lugares, em seus ofícios, constituindo o mundo pra mim, anteparo para o que foi um acometimento: súbito é bom ter um corpo pra rir e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo alegre do que triste. Melhor é ser.
Do blog Mothern , que eu adoro. Dá até vontade de ser mãe daqui a uns 20 anos. Violência doméstica Quando fiquei grávida da Gabi, Nina tinha 2 anos. Comuniquei: - Nina, tem um neném na minha barriga. - Eu vou bater nele.
Em minhas últimas brigas com meu namorado, tenho pedido sempre mais atenção. Mais cuidado. Mais carinho. Mais tudo. Enfim, estou uma chata. Achei um texto sobre mulheres que bancam as resolvidas e depois se fodem, e reproduzo aqui, por encontrar grande semelhança com minha situação atual. O inferno é ser fodona do site 02 neurônio Este site é escrito por três mulheres fodonas. Sabe como é. A gente se vira sozinha, mano. Temos reuniões duras de negócios e colocamos o pau na mesa. Depois choramos, claro. Mas tomamos sozinhas o nosso banho quente e nosso calmante (seja ele qual for) depois e vamos em frente. Sabemos trocar a lâmpada. Tentamos arrumar sozinha nossos computadores. Quando não conseguimos, temos o telefone do homem do suporte e dinheiro para pagá-lo. Nós, as fodonas, não temos muitos ataques de ciúme, porque já fizemos muitos anos de análise, sabe como é. Por isso, entendemos que o problema dos outros é dos outros. Aprendemos a segurar a nossa onda e sofremos de ciúme um pou
Maria Elisa Ferraz Paciornik . Esse é o nome da autora do poema que eu postei há uns dias, no auge da crise de saudade e de desespero por perder meu amor para Goiânia. Vou repeti-lo aqui porque ele é lindo, mas depois de uma super temporada na minha nova segunda casa, meu coração já está melhor, obrigada. Olha, hoje não vem fazer confidência, vê se hoje não vem se queixar hoje estou morrendo de pena de mim, hoje não quero escutar.
O que é angústia Clarice Lispector, “A descoberta do mundo”. Um rapaz fez-me essa pergunta difícil de ser respondida. Pois depende do angustiado. Para alguns incautos, inclusive, é palavra de que se orgulham de pronunciar como se com ela subissem de categoria - o que também é uma forma de angústia. Angústia pode ser não ter esperança na esperança. Ou conformar-se sem se resignar. Ou não se confessar nem a si próprio, ou não ser o que realmente se é, e nunca se é. Angústia pode ser o desamparo de estar vivo. Pode ser também não ter coragem de ter angústia - e a fuga é outra angústia. Mas angústia faz parte: o que é vivo, por ser vivo, se contrai. Esse mesmo rapaz perguntou-me: você não acha que há um vazio sinistro em tudo? Há sim. Enquanto se espera que o coração entenda.
As sem razões do amor Carlos Drummond de Andrade Eu te amo porque te amo. Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga, nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor.
Olha, hoje não vem fazer confidência, vê se hoje não vem se queixar hoje estou morrendo de pena de mim, hoje não quero escutar. Maria Elisa (de sobrenome difícil, que eu esqueci)
O Fer foi pra bem longe e me levou com ele. Soneto do amor como um rio Vinícius de Moraes Este infinito amor de um ano faz Que é maior do que o tempo e do que tudo Este amor que é real, e que, contudo Eu já não cria que existisse mais. Este amor meu é como um rio; um rio Noturno, interminável e tardio A deslizar macio pelo ermo Em que seu curso sideral me leva Iluminado de paixão na treva Para o espaço sem fim de um mar sem termo. ***** Leminski você está tão longe que às vezes penso que nem existo nem fale em amor que amor é isto
Bilhete Mário Quintana Se tu me amas, ama-me baixinho Não o grites de cima dos telhados Deixa em paz os passarinhos Deixa em paz a mim! Se me queres, enfim, tem de ser bem devagarinho, Amada, que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...
Pneumotórax Manuel Bandeira Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e não foi. Tosse, tosse, tosse. Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três. - Trinta e três... trinta e três... trinta e três... - Respire. ........................................................................... - O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o [pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Para o Fer levar com ele: Maiakovski Aparelhei o barco da ilusão E reforcei a fé de marinheiro. Era longe o meu sonho, e traiçoeiro O mar... (Só nos é concedida Esta vida Que temos; E é nela que é preciso Procurar O velho paraíso Que perdemos). Prestes, larguei a vela E disse adeus ao cais, à paz tolhida. Desmedida, A revolta imensidão Transforma dia a dia a embarcação Numa errante e alada sepultura... Mas corto as ondas sem desanimar. Em qualquer aventura O que importa é partir, não é chegar.
Lygia Fagundes Telles Estranho, sim. As pessoas ficam desconfiadas, ambíguas diante dos apaixonados. Aproximam-se deles, dizem coisas amáveis, mas guardam certa distância, não invadem o casulo imantado que envolve os amantes e que pode explodir como um terreno minado, muita cautela ao pisar nesse terreno. Com sua disciplina indisciplinada, os amantes são seres diferentes e o ser diferente é excluído porque vira desafio, ameaça. Se o amor na sua doação absoluta os faz mais frágeis, ao mesmo tempo os protege como uma armadura. Os apaixonados voltaram ao Jardim do Paraíso, provaram da Árvore do Conhecimento e agora sabem.
O que é triste pode ser bonito. E Lya Luft pode ser legal. O lado fatal Lya Luft I Quando meu amado morreu, não pude acreditar: andei pelo quarto sozinha repetindo baixo: "Não acredito, não acredito”. Beijei sua boca ainda morna, acarinhei seu cabelo crespo, tirei sua pesada aliança de prata com meu nome e botei no dedo. Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso. Muita gente veio e se foi. Olharam, me abraçaram, choraram, todos com ar de incrédula orfandade. Aquele de quem hoje falam e escrevem (ou aos poucos vão-se esquecendo) é muito menos do que este, deitado em meu coração, meu amante e meu menino ainda. II Deus (ou foi a Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado (não se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto de hospital, e partiu. Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis, ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?), o meu amado e eu. Enterrei o rosto na curva do seu ombro com
Açúcar emprestado Luis Fernando Veríssimo Vizinhos de porta, ele o 41 e ela o 42. Primeiro lance: ela. Bateu na porta dele e pediu açúcar emprestado para fazer um pudim. Segundo lance: ela de novo. Bateu na porta dele e perguntou se ele não queria provar o pudim. Afinal, era co-autor. Terceiro lance: ele. Hesitou, depois perguntou se ela não queria entrar. Ela entrou, equilibrando o prato do pudim longe do peito para não derramar a calda. - Não repara a bagunça... - O meu é pior. - Você mora sozinha? Sabia que ela morava sozinha. Perguntara ao porteiro logo depois de se mudar. A do 42? Dona Celinha? Mora sozinha. Morava com a mãe mas a mãe morreu. Boa moça. Um pouco... E o porteiro fizera um gesto indefinido com a mão, sem dizer o que a moça era. Fosse o que fosse, era só um pouco. A conversa começou com apresentações e troca de informações - "Nélio", "Celinha", "Capricórnio", "Leão", "Daqui mesmo", "Eu também" - e continuou e
A seco Leila Míccolis Tem coisas que a gente só diz de porre se não o outro corre; mas passada a bebedeira, a gente acha que fez besteira, não devia ter falado, que se expôs adoidado, à toa e foi tolice. Finge-se então que se esquece o que disse, culpa-se a carência, a demência, a embriaguez responsáveis por tamanha estupidez. E é aceitando este estranho cabedal que quando se volta ao "estado normal", cada vez mais sós, na defensiva, corroídos morremos de cirrose... afetiva
Para o Fer: “O inferno dos vivos não é algo que vai existir: se existe, já está aqui, o inferno de nossa vida cotidiana, formado pelo fato de vivermos juntos. Há duas formas de suportá-lo. A primeira é a que muitos acham fácil: aceitar o inferno e tornar-se parte dele, até não o ver mais. A segunda é arriscada e exige constante atenção e aprendizado: no meio do inferno procurar e saber reconhecer o que não é inferno, fazê-lo durar, dar-lhe espaço”. Cidades Invisíveis, Italo Calvino
Hilda Hilst Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua de estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo. Que o olhar não se perca nas tulipas Pois formas tão perfeitas de beleza Vêm do fulgor das trevas. E o meu Senhor habita o rutilante escuro De um suposto de heras em alto muro. Que este amor só me faça descontente E farta de fadigas. E de fragilidades tantas Eu me faça pequena. E diminuta e tenra Como só soem ser aranhas e formigas. Que este amor só me veja de partida.
XLII - Passou a diligência Alberto Caeiro Passou a diligência pela estrada, e foi-se; E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia. Assim é a ação humana pelo mundo fora. Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos; E o sol é sempre pontual todos os dias.
Eu bem que tento não postar sempre os mesmos autores. Mas como não escolher Clarice Lispector? a Chegando em casa, não conseguia ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei mais ainda indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, e achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.
Despedida Cecília Meirelles Por mim, e por vós, e por mais aquilo que está onde as outras coisas nunca estão, deixo o mar bravo e o céu tranqüilo: quero a solidão. Meu caminho é sem marcos nem paisagens. E como o conheces? - me perguntarão. - Por não ter palavras, por não ter imagens. Nenhum inimigo e nenhum irmão. Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada. Viajo sozinha com o meu coração. Não ando perdida, mas desencontrada. Levo o meu rumo na minha mão. A memória voou da minha fronte. Voou meu amor, minha imaginação... Talvez eu morra antes do horizonte. Memória, amor e o resto onde estarão? Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra. (Beijo-te, corpo meu, todo desilusão! Estandarte triste de uma estranha guerra...) Quero solidão.
Noite carioca Ana C. César Diálogo de surdos, não: amistoso no frio. Atravancos na contramão. Suspiros no Contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta Do mundo: essa que não tem nenhum segredo.
Mater dolorosa Adélia Prado (...) Uma vez fizemos piquenique, ela fez bolas de carne pra gente comer com pão. Lembro a volta do rio e nós na areia. Era domingo, ela estava sem fadiga e me respondia com doçura. Se for só isso o céu, está perfeito.
Fanatismo Florbela Espanca Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer razão do meu viver, Pois que tu és já toda a minha vida! Não vejo nada assim enlouquecida... Passo no mundo, meu Amor, a ler No misterioso livro do teu ser A mesma história tantas vezes lida! "Tudo no mundo é frágil, tudo passa..." Quando me dizem isto, toda a graça Duma boca divina fala em mim! E, olhos postos em ti, digo de rastros: "Ah! Podem voar mundos, morrer astros, Que tu és como Deus: Princípio e Fim!..."
Alberto Caeiro Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra cousa todos os dias são meus. (...)
Para um amor na rua Elisa Lucinda Meu amor, vem pra casa que ouvi dizer que vai estourar a guerra Nostradamus previu Raimunda, nega Raimunda confirmou Por favor, ponha os pés na terra Chão firme cama da gente ouvi dizer que vai estourar a guerra. Você que é mundano convicto você que erra vai argumentar que não há perigo e o escambau que é apenas o "bicho" internacional. Vai confundir tudo com show vai dizer que tem Prince, Rock n'roll Gun's N'Roses e talvez Gal; É mau, meu bem tem também Sadam, Bushes e mesquinharias Vem pra casa guardar num cofre sua ingenuidade vem proteger da maldade sua fotografia. Aqui fiz cuscuz farofa e feijão fraldinho aqui pintei filosofia, comigo-ninguém-pode espada de São Jorge, jasmim, arruda, carinho. Tudo anti-míssil tudo bruxaria anti-crueldade bélica Lá fora alguns meninos querem experimentar a potência de seus terríveis brinquedos. Não tenha medo vem pra casa sem nem telefonar aqui tem ar, poesia, fé e tudo que a alegria da alma e
Como se chama Clarice Lispector Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto - como se chama o que sinto? Uma pessoa de quem não se gosta mais e que não gosta mais da gente - como se chama essa mágoa e esse rancor? Estar ocupada, e de repente parar por ter sido tomada por uma desocupação beata, milagrosa, sorridente e idiota - como se chama o que se sentiu? O único modo de chamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com a própria pergunta. Qual é o nome? e é este o nome.
Cecília Meirelles Tenho fases como a lua. Fases de andar escondida, fases de vir para a rua... Perdição da minha vida! Perdição da vida minha! Tenho fases de ser tua, tenho outras de ser sozinha. Fases que vão e que vêm, no secreto calendário que um astrólogo arbitrário inventou para meu uso. E roda a melancolia Seu interminável fuso! Não me encontro com ninguém (tenho fases, como a lua...) No meu dia de alguém ser meu Não é dia de eu ser sua... E, quando chega esse dia, O outro desapareceu... *** Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar; - depois, abri o mar com as mãos, para o meu sonho naufragar Minhas mãos ainda estão molhadas do azul das ondas entreabertas, e a cor que escorre de meus dedos colore as areias desertas. O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da água vai morrendo meu sonho, dentro de um navio... Chorarei quanto for preciso, para fazer com que o mar cresça, e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desapareça. Depois, tudo estará perf
Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel serrana bela, Mas não servia ao pai, servia a ela, Que a ela só por prêmio pretendia. Os dias na esperança de um só dia Passava, contentando-se com vê-la: Porém o pai usando de cautela, Em lugar de Raquel lhe deu a Lia. Vendo o triste pastor que com enganos Assim lhe era negada a sua pastora, Como se a não tivera merecido, Começou a servir outros sete anos, Dizendo: mais servira, se não fora Para tão longo amor tão curta a vida. Luís Vaz de Camões
“Nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares” Ana Cristina César Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse... ai que enjôo me dá o açúcar do desejo.
A moda dos casais trocados é relativamente nova. Quer dizer, desejar a mulher do próximo é antigo como os dez mandamentos; a novidade é o próximo gostar da idéia e desejar a sua mulher também. Luís Fernando Veríssimo
Dialética Vinícius de Moraes É claro que a vida é bela E a alegria, a única indizível emoção É claro que te acho linda Em ti bendigo o amor das coisas simples É claro que te amo E que tenho tudo pra ser feliz Mas acontece que eu sou triste...
Alberto Caeiro Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
Clarice Lispector O pior de mentir é que cria falsa verdade. (Não, não é tão óbvio como parece, não é truísmo; sei que estou dizendo uma coisa e que apenas não sei dizê-la do modo certo, aliás, o que me irrita é que tudo tem de ser "do modo certo", imposição muito limitadora). O que é mesmo que eu estava tentando pensar? Talvez isso: se a mentira fosse apenas a negação da verdade, então este seria um dos modos (negativos) de dizer a verdade. Mas a mentira pior é a mentira "criadora". (Não há dúvida: pensar me irrita, pois antes de começar a pensar eu sabia muito bem o que eu sabia).
Ainda é o melhor que eu já li sobre namorados. Afinal, hoje é 12 de junho. (Ao meu namorado, o de sempre e o mais verdadeiro: eu te amo). Aos namorados do Brasil Carlos Drummond de Andrade Dai-me, Senhor, assistência técnica para eu falar aos namorados do Brasil. Será que namorado algum escuta alguém? Adianta falar a namorados? E será que tenho coisas a dizer-lhes que eles não saibam, eles que transformam a sabedoria universal em divino esquecimento? Adianta-lhes, Senhor, saber alguma coisa, quando perdem os olhos para toda paisagem, perdem os ouvidos para toda melodia e só vêem, só escutam melodia e paisagem de sua própria fabricação? Cegos, surdos, mudos - felizes! - são os namorados enquanto namorados. Antes, depois são gente como a gente, no pedestre dia-a-dia. Mas quem foi namorado sabe que outra vez voltará à sublime invalidez que é signo de perfeição interior. Namorado é o ser fora do tempo, fora de obrigação e CPF, ISS, IFP, PASEP, INPS. Os códigos, desarmados, retrocedem de su
Correspondência Ana C. César My dear, (...) Depois que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado, porque a emoção esfriou com a voz real. Ao pedir a ligação, meu coração queimava. E quando a gente falou era tão assim, você vendo TV e eu perto de bananas, tão sem estilo (como nas cartas). Você não acha que a distância e a correspondência alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do bosque)?
Ensinamento Adélia Prado Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é . A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo: "coitado, até essa hora no serviço pesado". Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente. Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.
Desde pequena tenho mania de guardar tudo o que leio e gosto. Isso me rendeu, em meus 25 anos de hoje, uma coleção enorme de poesias, textos, trechos, escritos em geral. Ninguém lê nada impunemente, sem expor um pouquinho de si na forma como enfatiza as palavras, como sublinha um trecho ou outro. A maior poesia de qualquer texto talvez esteja exatamente aí. Delicatessen Hilda Hilst Você nunca conhece realmente as pessoas. O ser humano é mesmo o mais imprevisível dos animais. Das criaturas. Vá lá. Gosto de voltar a este tema. Outro dia apareceu uma moça aqui. Esguia, graciosa, pedindo que eu autografasse meu livro de poesia, "tá quentinho, comprei agora". Conversamos uns quinze minutos, era a hora do almoço, parecia tão meiga, convidei-a para almoçar, agradeceu muito, disse-me que eu era sua "ídala", mas ia almoçar com alguém e não podia perder esse almoço. Alguém especial?, perguntei. Respondeu nítida: "pé-de-porco". Não entendi. Como? "Adoro pé-de-po