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Mostrando postagens de 2004
Chico Buarque, ontem, na Folha de São Paulo: "Deveria ser também motivo de satisfação ter tido um professor, um sociólogo como o Fernando Henrique na Presidência. Foi um progresso. Nós vínhamos de anos e anos de generais, que não eram eleitos, depois tivemos o Sarney, acidentalmente, o Collor e o Itamar. A eleição do Fernando Henrique foi um salto qualitativo. É um intelectual, um homem com estofo. Agora, também não concordo com aquela satisfação que se viu no nosso meio - "é um de nós, finalmente". Não quero um de nós na Presidência (risos). Não quero ser presidente. Não gostaria que meu pai fosse presidente da República. Não é por aí. Também não acho que o fato de o Lula não ter curso secundário completo seja em si uma virtude. Virtude é ele poder ter sido eleito. Ele pode ser um bom ou um mau presidente. O Brasil ter eleito Lula contradiz tudo o que eu disse há pouco a respeito de um país que parece cada vez mais estar contra gente como o Lula. E volto a repetir: não
"Se alguém me amar agora, não será por um belo corpo que fatalmente irá mudar, mas por isso que sou hoje sem disfarces. Nenhum esplendoroso corpo jovem, malhado me ameaça: meu território é outro" Lya Luft, chupado de Cascos e Carícias
Se Alice Ruiz se por acaso a gente se cruzasse ia ser um caso sério você ia rir até amanhecer eu ia ir até acontecer de dia um improviso de noite uma farra a gente ia viver com garra eu ia tirar de ouvido todos os sentidos ia ser tão divertido tocar um solo em dueto ia ser um riso ia ser um gozo ia ser todo dia a mesma folia até deixar de ser poesia e virar tédio e nem o meu melhor vestido era remédio daí vá ficando por aí eu vou ficando por aqui evitando desviando sempre pensando se por acaso a gente se cruzasse...
Com licença poética Adélia Prado Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou tão feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade da alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou.
Da animação "Os Incríveis", da Pixar - meu programa de ontem às dez e meia da manhã (thanx, Marinete!): "Dizer que todos são especiais é também um jeito de dizer que ninguém é".
Transcrição de blog alheio. Lá, o título é "Metalinguagem". Aqui, foi mudado para "É por isso que eu escolhi esse homem". Metalinguagem É estranho escrever pra um leitor indefinido. Via de regra, uma das primeiras coisas que alguém considera ao escrever é o perfil dos seus leitores e, em seguida, como agradá-los. No caso de um blog a situação é mais complexa. Ele não funciona como um diário, porque se está publicado é para ser lido. Outras pessoas podem e vão visitá-lo. Essa coisa de "é só pra mim" não existe. Fato. Ao mesmo tempo, como não se pode ter certeza de quem frequenta o tal blog - por menos frequentadores que ele possa ter -, escrever exige um certo dom de imaginação. Acho que as coisas se estabilizam da seguinte maneira: quem escreve, escreve como gosta; quem lê, lê o que gosta. (Minha preocupação em agradar não consegue ser discreta. Que saudades da análise)
Coluna do Zé Simão de hoje, na Folha de São Paulo: s ANA MARIA BRAGA RESOLVE IMPASSE MUNDIAL! Olha só os comentários da Anameba Brega sobre a morte de Arafat: "Grande homem que passou a vida lutando pela criação do Estado de Israel". "Líder máximo da Palestina que se dedicou à libertação de Israel." Imagine a confusão na casa dela. Vão acabar bombardeando a toca do Louro José.
Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da ami
Zezé e Luciano me entendem... já estou procurando em MP3, em breve estarei cantando junto com eles. Atenção ao bom gosto e à riqueza da letra. Obrigada, leitor(es), pela dica. Refém do amor De repente você chega desse jeito Diz que meu amor é seu, que tem direito De entrar e de sair da minha vida Quando quiser Você sabe que meu coração é seu E nessa história de te amar mais do que eu Fiquei perdido Toda vez que você chega do meu lado Minha timidez me deixa tão calado E inseguro eu me agarro aos pedacinhos Que ainda restam de mim E lá vou eu outra vez Refém do amor que me fez Cair de novo em seus braços E lá vou eu outra vez Refém do amor que me fez Um louco por seus abraços E nessa loucura de te amar Eu morro um pouco a cada dia Falta amor, carinho, abraço, beijo Falta a sua companhia Entre o bem e o mal tô dividido Sem saber o que fazer Mas no fim a história é sempre a mesma Eu grudado em você.
Pranto para comover Jonathan Adélia Prado Os diamantes são indestrutíveis? Mais é meu amor. O mar é imenso? Meu amor é maior, mais belo sem ornamentos do que um campo de flores. Mais triste do que a morte, mais desesperançado do que a onda batendo no rochedo, mais tenaz que o rochedo. Ama e nem sabe mais o que ama.
Estado Puro: not for all the love in the world Não conheço os donos desse blog, mas adorei o que eles escrevem. Sem falar que, no português de Portugal, tudo soa tão poético...
Amor Vinícius de Moraes Vamos brincar, amor? vamos jogar peteca Vamos atrapalhar os outros, amor, vamos sair correndo Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação? Vamos sofrer, amor? males da alma, perigos Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo Vamos, amor? vamos tomar porre de absinto Vamos tomar porre de coisa bem esquisita, vamos Fingir que hoje é domingo, vamos ver O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão? Vamos,amor, tomar thé na Cavé com madame Sevignée Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N. S. do Parto? Vamos, amor? vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol Vamos, amor? Porque excessivamente grave é a Vida.
Pérolas de criança - Dalton Trevisan — Tua professora ligou. De castigo, você. Beijando na boca os meninos. Que feio, meu filho. Não é assim que se faz. — ... — Menino beija menina. — Você é gozada, cara. — ... — Pensa que elas deixam? *** Ele sai do banheiro, a toalha na cintura. — Pai, deixa eu ver o teu rabo. É a tipinha deslumbrada no baile da debutante de três anos. — Rabo, filha? Ah, sei. O bumbum do pai? — Seu bobo. — ... — Esse pendurado aí na frente. *** O pai telefona para casa: — Alô? — ... Reconhece o silêncio da tipinha. Você liga? Quem fala é você. — Alô, fofinha. Nem um som. Criança não é para ser chamada fofinha. Cinco anos, já viu. — Oi, filha. Sabe que eu te amo? — Eu também. "Puxa, ela nunca disse que me amava". — Também o quê? — Eu também amo eu.
Cultura Arnaldo Antunes O girino é o peixinho do sapo. O silêncio é o começo do papo. O bigode é a antena do gato. O cavalo é o pasto do carrapato. O cabrito é o cordeiro da cabra. O pescoço é a barriga da cobra. O leitão é um porquinho mais novo. A galinha é um pouquinho do ovo. O desejo é o começo do corpo. Engordar é tarefa do porco. A cegonha é a girafa do ganso. O cachorro é um lobo mais manso. O escuro é a metade da zebra. As raízes são as veias da seiva. O camelo é um cavalo sem sede. Tartaruga por dentro é parede. O potrinho é o bezerro da égua. A batalha é o começo da trégua. Papagaio é um dragão miniatura. Bactéria num meio é cultura.
Porque a Jô me escreveu um e-mail. E porque esse poema merecia ser dela, mesmo se ela não tivesse escrito: Soneto do amigo Vinícius de Moraes Enfim, depois de tanto erro passado Tantas retaliações, tanto perigo Eis que ressurge noutro o velho amigo Nunca perdido, sempre reencontrado. É bom sentá-lo novamente ao lado Com os olhos que contêm o olhar antigo Sempre comigo um pouco atribulado E como sempre singular comigo. Um bicho igual à mim, simples e humano Sabendo se mover e comover E a disfarçar com meu próprio engano. O amigo: um ser que a vida não explica Que só se vai ao ver outro nascer E o espelho de minha alma multiplica...
Choro à capela Adélia Prado O poder que eu quisera é dominar meu medo. Por este grande Dom troco meu verso, meu dedo, meus anéis e colar. Só meu colo não ponho no machado, porque a vida não é minha. com um braço só, uma só perna, ou sem os dois de cada um, vivo e canto. Mas com todos e medo, choro tanto que temo dar escândalo a meus irmãos. Mas venho e vou, "os lobos tristes" a seu modo louvam. Nasci vacum, berro meu era só por montar, parir, a boa fome, os júbilos ferozes. As vacas velhas têm os olhos tristes? Tristeza é o nome do castigo de Deus e virar santo é reter a alegria. Isto eu quero.
Paulo Leminski Ai daqueles que se amaram sem nenhuma briga aqueles que deixaram que a mágoa nova virasse a chaga antiga ai daqueles que se amaram sem saber que amar é pão feito em casa e que a pedra só não voa porque não quer não porque não tem asa.
Charles Baudelaire É necessário estar sempre bêbedo. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas - de que? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.
Lya Luft Se te pareço ausente, não creias: hora a hora minha dor agarra-se aos teus braços, hora a hora meu desejo revolve teus escombros, e escorrem dos meus olhos mais promessas. Não acredites nesse breve sono; não dês valor maior ao meu silêncio; e se leres recados numa folha branca, Não creias também: é preciso encostar teus lábios nos meus lábios para ouvir. Nem acredites se pensas que te falo: palavras são meu jeito mais secreto de calar.
Casamento Adélia Prado Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como "este foi difícil" "prateou no ar dando rabanadas" e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.
A espantosa realidade das cousas É a minha descoberta de todos os dias. Cada cousa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta. Basta existir para se ser completo. Tenho escrito bastantes poemas. Hei de escrever muitos mais. Naturalmente. Cada poema meu diz isto, E todos os meus poemas são diferentes, Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto. Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra. Não me ponho a pensar se ela sente. Não me perco a chamar-lhe minha irmã. Mas gosto dela por ela ser uma pedra, Gosto dela porque ela não sente nada. Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo. Outras vezes oiço passar o vento, E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido. Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto; Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo, Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar; Porque o penso sem pensamentos Porque o digo como as min
Clarice Lispector Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que sangue escarlate não estava em silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de morte, estava pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz-de-conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz-de-conta verde cintilante de olhos que vêem, faz de conta que ela amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer
A hora do cansaço Carlos Drummond de Andrade As coisas que amamos, as pessoas que amamos são eternas até certo ponto. Duram o infinito variável no limite do nosso poder de respirar a eternidade. Pensá-las é pensar que não acabam nunca, dar-lhes moldura de granito. De outra matéria se tornam, absoluta, numa outra (maior) realidade. Começam a esmaecer quando nos cansamos, e todos nos cansamos, por um outro itinerário, de aspirar a resina do eterno. Já não pretendemos que sejam imperecíveis. Restituímos cada ser e coisa à condição precária, rebaixamos o amor [ao estado de utilidade. Do sonho de eterno fica esse gosto acre na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.
Primeira (e última) sessão de drenagem linfática da minha vida. Conclusão: decidi que vou morrer com todas as celulites que Deus quiser me dar. A beleza é muito dolorida. Receita de mulher Vinícius de Moraes As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental. É preciso que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture em tudo isso (ou então que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa). Não há meio-termo possível. É preciso que tudo isso seja belo. É preciso que súbito tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche no olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços alguma coisa além da carne: que se os toque como ao âmbar de uma t
Briga no Beco Adélia Prado Encontrei meu marido às três horas da tarde com uma loura oxidada. Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados. Ataquei-os por trás com mãos e palavras que nunca suspeitei conhecesse. Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei, gritei meu urro, a torrente de impropérios. Ajuntou gente, escureceu o sol, a poeira adensou como cortina. Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura, sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea ofendida, uivava. Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se. Quando não pude mais, fiquei rígida, as mãos na garganta dele, nós dois petrificados, eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos, as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças. Desde então faço milagres.
é muito claro amor bateu para ficar nesta varanda descoberta a anoitecer sobre a cidade em construção sobre a pequena constrição no teu peito angústia de felicidade luzes de automóveis riscando o tempo canteiros de obras em repouso recuo súbito da trama. Ana Cristina César
Amor violeta Adélia Prado O amor me fere é debaixo do braço, de um vão entre as costelas. Atinge o meu coração é por esta via inclinada. Eu ponho o amor num pilão com cinza e grão de roxo e soco. Macero ele, faço dele cataplasma.
Clima-X Aldir Blanc Quando, agonizantes, gozamos, transcendemos essa históriade ser mulher ou ser marido: É como se você fosse terra e eu tivesse chovido.
Que presente te dar Affonso Romano de Sant’Anna Que presente te dar, eu que tanto quero e pouco dou, porque mesquinho, egoísta, distraído não te cumulo daquilo que deveria cumular? Deveria desatar inúmeros presentes ao pé da árvore, entreabrindo jóias, tecidos, requintados e pessoais objetos, ou deveria dar-te não o que posso buscar lá fora, mas o que, em mim, está fechado e mal sei desembrulhar? Gostaria de dar-te coisas naturais, feitas com a mão como fazem os camponeses, os artesãos, como faz a mulher que ama e prepara o Natal com seus dedos e receitas, adornos e atenções. Te dar, talvez, um pedaço de praia primitiva, como aquelas do Nordeste, ou de antigamente - Búzios e Cabo Frio: um pedaço de mar das ilhas do Caribe, onde a água e o mar são transparentes e onde a areia é fina e brilhante e, sozinhos, habitam a eternidade e os amantes. Te dar aquele verso de canção um dia ouvida não sei mais onde, se numa tarde de chuva, se entre os lençóis cansados; um verso, uma canção
Assombros Affonso Romano de Sant’Anna Às vezes, pequenos grandes terremotos ocorrem do lado esquerdo do meu peito. Fora, não se dão conta os desatentos. Entre a aorta e a omoplata rolam alquebrados sentimentos. Entre as vértebras e as costelas há vários esmagamentos. Os mais íntimos já me viram remexendo escombros. Em mim há algo imóvel e soterrado em permanente assombro.
A cláusula do elevador Veríssimo Porque eram precavidos, porque queriam que sua união desse certo, e principalmente porque eram advogados, fizeram um contrato nupcial. Um instrumento particular, só entre os dois, separado das formalidades usuais de um casamento civil. Nele estariam explicitados os deveres e os compromissos de cada um até que a morte ou o descumprimento de qualquer uma das cláusulas os separasse. Passaram boa parte do noivado preparando o documento. Tudo correu bem até chegarem à cláusula que tratava da fidelidade. Ele ponderou, chamando-a de "cara colega" entre risadas (estavam na cama), que a obrigação de ser fiel deveria constar no contrato, claro, desde que a cláusula correspondente permitisse uma certa flexibilidade. - Vejo que o nobre causídico advoga em sem-vergonhice própria - brincou ela, cutucando-o. - Não, não, disse ele. - Só acho que devemos levar em consideração as hipóteses heterodoxas. As eventualidades aleatórias. As circunstâncias at
Amor Adélia Prado A formosura do teu rosto obriga-me e não ouso em tua presença ou à tua simples lembrança recusar-me ao esmero de permanecer contemplável. Quisera olhar fixamente a tua cara, como fazem comigo soldados e choferes de ônibus. Mas não tenho coragem, olho só tua mão, a unha polida olho, olho, olho e é quanto basta pra alimentar fogo, mel e veneno deste amor incansável que tudo rói e banha e torna apetecível: cadeiras, desembocaduras de esgotos, idéia de morte, gripe, vestido, sapatos, aquela tarde de sábado, esta que morre agora antes da mesa pacífica: ovos cozidos, tomates, fome dos ângulos duros de tua cara de estátua. Recolho tamancos, flauta, molho de flores, resinas, rispidez de teu lábio que suporto com dor, e mais retábulos, faca, tudo serve e é estilete, lâmina encostada em teu peito. Fala. Fala sem orgulho ou medo que à força de pensar em mim sonhou comigo e passou o dia esquisito, o coração em sobressaltos à campainha da porta, disp
Entre vista 1 e 2 (ou aquilo que ainda não me perguntaram) (fragmentos) Elisa Lucinda - que o homem que habita o meu desejo e o lado mais nobre de minha cama-alma é o mesmo do meu sonho; - que estou muito acostumada comigo. E quase não brigamos; - que gosto de luta mas não gosto de briga; - que todos os beijos na boca são únicos; - que se eu passar mais de 24 horas num lugarejo com amor, viro nativa, avó, parteira e vizinha; - que ajo como se fosse viver eternamente e morrer amanhã; - que sou chegada num trovão e a porção de delicadezas que pode causar sobre um poema. - que o medo é um defeito físico. Paralisa.
Era uma menina que gostava de inventar uma explicação para cada coisa - explicação é uma frase que se acha mais importante do que a palavra. Ela achava o mundo do lado de fora um pouquinho complicado. Se cada um simplificasse as coisas, o mundo podia ser mais fácil, ela pensava. Então tentava simplificar o mundo dentro da sua cabeça - simplificar é quando em vez de pensar em 4/8 a pessoa pensa logo em 1/2. Um meio, quando é escrito em números, sempre quer dizer "metade". Mas quando é escrito em letras, pode também querer dizer "um jeito". Existem vários jeitos de entender o mundo. Ela tentava explicar de um jeito que ele ficasse mais bonito. Essa menina pensa que é filósofa, as pessoas falavam - filósofo é quem, em vez de ver televisão, prefere ficar pensando pensamentos. De tanto que a menina explicava, as pessoas às vezes se irritavam ( irritação é um alarme de carro que dispara bem no meio de seu peito) e terminavam indo embora, deixando a menina lá, explican
O olimpo da mulheres prendadas Jô Hallack ( www.02neuronio.com.br ) Tudo começou com um bolo de cenoura. Ficou ótimo, porém, com jeito de solado. Suas amigas e sua mãe lhe garantiram que bolo de cenoura sempre fica com jeito de solado. E você resolveu ir além. Com um objetivo definido: chegar ao olimpo das pessoas prendadas. Seres humanos elevados que sabem fazer até o trivial. E por que isso? Porque você surtou e quer ser do lar. Acontece nas melhores famílias. Você, oprimida por ter que fazer jornada dupla de trabalho - isto é, trabalhar na sua firma e trabalhar na sua casa... oprimida por ter que ser inteligente, criativa, empreendedora e conquistar o mundo (oprimida por você mesma, bom dizer) - resolve escapar pelos fundos. E aprender a cozinhar. E não vale aquelas picaretagens refinadas não! Sim, você sabe até fazer atum com coscouz marroquino. Mas a mulherzinha que grita dentro de você diz que você tem que ser uma cozinheira ordinária. No melhor dos sentidos. E fazer feijão
(...) Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. A té cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. (...) Clarice Lispector
Samba-canção Ana Cristina Cesar Tantos poemas que perdi. Tantos que ouvi, de graça, pelo telefone – taí, eu fiz tudo pra você gostar, fui mulher vulgar, meia-bruxa, meia-fera, risinho modernista arranhando na garganta, malandra, bicha, bem viada, vândala, talvez maquiavélica, e um dia emburrei-me, vali-me de mesuras era comércio, avara, embora um pouco burra, porque inteligente me punha logo rubra, ou ao contrário, cara pálida que desconhece o próprio cor-de-rosa, e tantas fiz, talvez querendo a glória, a outra cena à luz de spots, talvez apenas teu carinho, mas tantas, tantas fiz...
Teu corpo seja brasa Alice Ruiz teu corpo seja brasa e o meu a casa que se consome no fogo um incêndio basta pra consumar esse jogo uma fogueira chega pra eu brincar de novo
Verdade Carlos Drummond de Andrade A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
"Deve-se apresentar ao sujeito o seu próprio dito, o mesmo que dizer 'coma o que disse', pois não se come apenas livros como no Apocalipse de São João; também se come as próprias palavras em análise, ainda que não sejam um prato saboroso". Miller, "Diagnóstico e localização subjetiva". In: Lacan Elucidado.
Aceitação Cecília Meirelles É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens E sentir passar as estrelas Do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos. É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano E assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas, Que desejar que apareças, criando com teu simples gesto O sinal de uma eterna esperança. Não me interessam nem mais as estrelas, nem as formas do mar, nem tu. Desenrolei de dentro do tempo a minha canção: Não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.
Pronominais Oswald de Andrade Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro
"A posição ética tradicional, metafísica, política, que permitia às pessoas orientar seu pensamento, está em falta. O excesso se tornou a norma". Charles Melman, psicanalista. Revista Isto É, 22/09/04.
Emergência Mário Quintana Quem faz um poema abre uma janela. Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela. Por isso é que os poemas têm ritmo - para que possas profundamente respirar. Quem faz um poema salva um afogado.
Os teus pés Pablo Neruda Quando não posso contemplar teu rosto, contemplo os teus pés.Teus pés de osso arqueado, teus pequenos pés duros. Eu sei que te sustentam e que teu doce peso sobre eles se ergue. Tua cintura e teus seios, a duplicada púrpura dos teus mamilos, a caixa dos teus olhos que há pouco levantaram vôo, a larga boca de fruta, tua rubra cabeleira, pequena torre minha. Mas se amo os teus pés é só porque andaram sobre a terra e sobre o vento e sobre a água, até me encontrarem.
Aos apaixonados Rubem Alves Dedico esta crônica aos apaixonados, mesmo sabendo que servirá para nada: é inútil falar aos apaixonados. Os apaixonados só ouvem poemas e canções. A paixão, experiência insuperável de prazer e alegria, pelo fato mesmo de ser uma experiência insuperável de prazer e alegria, coloca o apaixonado fora dos limites da razão. Todo apaixonado é tolo. Pode ser que ele escute a fala da razão. Escuta mas não acredita. Diz ele: "o meu caso é diferente!" Tolo mesmo é quem tenta argumentar com os apaixonados. Começa, pois, assim, minha inútil meditação com um verso terrível de T. S. Eliot. Ele está rezando. Ele sabe que somente Deus tem poder para lidar com a loucura da paixão. Ele reza assim: livra-me da dor da paixão não satisfeita e da dor muito maior da paixão satisfeita. Todo mundo sabe que paixão não satisfeita dói. Mas poucos sabem que a paixão só existe se não for satisfeita. A paixão é fome. Ela só floresce na ausência do objeto amado. Mais precisament
Toco sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você. Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas se encontram e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um per
Teu nome Vinícius de Moraes Teu nome, Maria Lúcia Tem qualquer coisa que afaga Como uma lua macia Brilhando à flor de uma vaga. Parece um mar que marulha De manso sobre uma praia Tem o palor que irradia A estrela quando desmaia. É um doce nome de filha É um belo nome de amada Lembra um pedaço de ilha Surgindo de madrugada. Tem um cheirinho de murta E é suave como a pelúcia É acorde que nunca finda É coisa por demais linda Teu nome, Maria Lúcia...
Late Ilusão Elisa Lucinda Em noite de lua cheia geme ao meu lado o meu cão acabado de chegar late ilusões ao meu ouvido e meu sentido diz que ele veio pra ficar Mas a vida passa e vira páginas da folhinha o que era cheia e domingo foi minguando em segundas e terças e meu homem, minha besta voltou novo e repetido como se fosse ficar até sexta três dias de ele chegando de madrugada três dias de ele nadando na minha água Conversas de homem e mulher beijo na boca tirar a roupa novos latidos de ilusão no meu duvido meu homem partiu na derradeira manhã todo agradecido dos momentos de amor que uivou comigo eu fiquei lua sozinha no céu com aquela saudade amarela e ele na terra cantando latindo partindo uivando pra ela.
O gato e o pássaro Jacques Prevért Uma cidade escuta desolada O canto de um pássaro ferido É o único pássaro da cidade E foi o único gato da cidade Que o devorou pela metade E o pássaro pára de cantar O gato pára de ronronar E de lamber o focinho E a cidade prepara para o pássaro Maravilhosos funerais E o gato que foi convidado Segue o caixãozinho de palha Em que deitado está o pássaro morto Levado por uma menina Que não pára de chorar Se soubesse que você ia sofrer tanto Lhe diz o gato Teria comido ele todinho E depois teria te dito Que tinha visto ele voar Voar até o fim do mundo Lá onde o longe é tão longe Que de lá não se volta mais Que você teria sofrido menos Sentiria apenas tristeza e saudades Não se deve deixar as coisas pela metade.
Tecendo a manhã João Cabral de Melo Neto I Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. II E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Tarde - LXIX Pablo Neruda Talvez não ser é ser sem que tu sejas, sem que vás cortando o meio-dia como uma flor azul, sem que caminhes mais tarde pela névoa e pelos tijolos, sem essa luz que levas na mão que talvez outros não verão dourada, que talvez ninguém soube que crescia como a origem vermelha da rosa, sem que sejas, enfim, sem que viesses brusca, incitante, conhecer a minha vida, rajada de roseira, trigo do vento, e desde então sou porque tu és, e desde então és, sou e somos, e por amor serei, serás, seremos.
"Você não entende porque a gente chora diante da beleza? A resposta é simples. Ao contemplar a beleza, a alma faz uma súplica de eternidade. Tudo o que a gente ama a gente deseja que permaneça para sempre. Mas tudo o que a gente ama existe sob a marca do tempo. Tudo é efêmero. Efêmero é o por do sol, efêmera é a canção, efêmero é o abraço, efêmera é a casa construída para o resto da vida. A gente chora diante da beleza porque a beleza é uma metáfora da própria vida." Rubem Alves (embora eu não goste de Rubem Alves.)
Viagem Miguel Torga Aparelhei o barco da ilusão E reforcei a fé de marinheiro. Era longe o meu sonho, e traiçoeiro O mar... (Só nos é concedida Esta vida Que temos; E é nela que é preciso Procurar O velho paraíso Que perdemos). Prestes, larguei a vela E disse adeus ao cais, à paz tolhida. Desmedida, A revolta imensidão Transforma dia a dia a embarcação Numa errante e alada sepultura... Mas corto as ondas sem desanimar. Em qualquer aventura O que importa é partir, não é chegar. P.S.: Não nos curamos nunca de nosso inconsciente. Na teoria é lindo, poético. Na prática é uma merda. "Então você quer dizer que você faz tudo, e nunca é o suficiente?". Não, eu não queria dizer isso. Mas eu disse, agora eu que me vire.
Um Beijo Vinícius de Moraes Um minuto o nosso beijo / Um só minuto; no entanto Nesse minuto de beijo / Quantos segundos de espanto! Quantas mães e esposas loucas / Pelo drama de um momento Quantos milhares de bocas / Uivando de sofrimento! Quantas crianças nascendo / Para morrer em seguida Quanta carne se rompendo / Quanta morte pela vida! Quantos adeuses efêmeros / Tornados o último adeus Quantas tíbias, quantos fêmures / Quanta loucura de Deus! Que mundo de mal-amadas / Com as esperanças perdidas Que cardume de afogadas / Que pomar de suicidas! Que mar de entranhas correndo / De corpos desfalecidos Que choque de trens horrendo / Quantos mortos e feridos! Que dízima de doentes / Recebendo a extrema-unção Quanto sangue derramado / Dentro do meu coração! Quanto cadáver sozinho / Em mesa de necrotério Quanta morte sem carinho / Quanto canhenho funéreo! Que plantel de prisioneiros / Tendo as unhas arrancadas Quantos beijos derradeiros / Quantos mortos nas estradas!
"Minha aposta mais alta. Minha cama com coberta no sábado mais frio. Sabe quando as coisas estão certas? Pois é. Você. (eu poeta...)". E eu musa.
Mais uma tentativa. Vamos ver se dá pé. O certo é que eu tenho tido vontade de escrever, ou de copiar o que os outros escreveram e eu não teria capacidade, ou coragem. Vai ser bom pra mim. Até que não seja mais - mas acho que esse é o destino dos blogs: acabarem, um dia, empoeirados e velhos, esquecidos pela rede.