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Mostrando postagens de janeiro, 2006
"Entrei no teu blog quando estava procurando um poema da Elisa Lucinda no google. Não achei o poema, mas achei um outro lugar de mim. Eu não sabia o quanto eu podia ser outra pessoa. Agora caminho os teus passos e as palavras e não palavras com que tu sem saber me narras. Adorei absolutamente tudo o que já li aqui, mesmo o que não gostei". . Se me permite, Nin, seja você quem for: roubei seu comentário porque queria um post para a sua delicadeza.
Em busca da civilidade (im)possível por Nina Lemos, do blog "02 Neurônio" Três semanas sem vê-lo depois que o mundo desabou sobre nós. Voltei a viver e a gostar da minha vida. Acordo bem. ELE não é a primeira coisa em que penso quando acordo. Aquele top fofo que comprei na Fashion House não me lembra ele. Me lembra apenas que eu gosto da roupa. Coloco sem culpa, para ser elogiada por outros homens, não por ele, que elogiou - um dos últimos elogios enquanto o mundo desabava sobre nós. Minhas calcinhas bonitas não me lembram mais ele. Nem a rua dele, nem nada. Recuperei-me. Recito "as coisas não precisam de você". É isso mesmo. Não precisam. Ele deixa um recado na secretária. Eu não ouço. Olha só, não ouvi porque não estava esperando. Mas ligo para ele. Temos conversa extremamente civilizada e carinhosa, agora, depois que o mundo desabou sobre nós. E agora, enquanto escrevo, ele acaba de entrar no MSN. É verdade. Pontada de dor no coração. Perdi o ritmo. Isso porque
O último carinho do mundo De Tati Bernardi. O amor com hora para acabar é o único que me interessa, é o único que sei amar, é até onde posso ir. Imagine que um avião cheio de mágoas e crianças envelhecidas pela dor vai bater no seu mundinho perfeito e estratégico e fazer explodir pelos ares o que você acreditava que era uma vidinha feliz e romântica. Já eram ombros largos, já era porta-retrato de sorrisos endurecidos pra sempre, já era o seu ódio pela imperfeição. Por isso, antes de dormir hoje, imagine que, no meio da noite, aquele cara de todos os dias, que já lhe causou alguma emoção mas agora se concentra apenas em roncar, vai se levantar de farda e marchar para uma inexistência de honra e se perder num tempo distante. Sei lá, acho que tô lendo Herman Hesse demais e estou com a temática guerra na cabeça, mas imagine qualquer outra coisa, então: que ele vai espirrar e a força do espirro será tão forte que ele vai se despedaçar em moléculas pelo universo e adeus olhos grandes e boca
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O tempo ainda é a melhor coisa que inventaram. . Choque térmico Martha Medeiros Uma pessoa fica duas horas jogando frescobol na beira da praia sob um sol africano: 38 graus. Terminada a partida, joga as raquetes para o alto e corre para um mar de temperatura siberiana, bem ao gosto dos pingüins. Resultado: choque térmico. Você não precisa fazer a experiência: quem já teve um grande amor e perdeu de um dia para o outro sabe como é. Você passa meses, talvez anos ao lado de alguém que aquece suas noites, que a faz queimar, derreter. Não é um forno de microondas: é seu namorado, que não precisa apertar botão nenhum para fazê-la arder, basta tocar no seu braço e temos um incêndio no quarteirão. Tudo é quente entre vocês: os olhares, os beijos e o resto, principalmente o resto. Vocês são pólvora, querosene, gasolina. Altamente inflamáveis. Imagine anos e anos nesse fogaréu, até que um dia ele telefona e diz que conheceu outra pessoa, que continua a gostar de você, mas como amiga. Choque térm
A dor que dói mais Martha Medeiros Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, doem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é saudade. Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que já morreu. Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa. Doem essas saudades todas. Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o escritório e ele para o dentista, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã. Mas quando o amor de um acaba, ao outro
As melhores e as piores coisas do mundo Martha Medeiros As melhores: banho escaldante, livro bom, acordar às seis da manhã e lembrar que é domingo, o dentista não encontrar nada para fazer na sua boca a não ser passar flúor. As piores: banheiro de avião, missa de sétimo dia, ir numa loja, adorar um casaco, ter dinheiro para comprá-lo mas como bom mão-de-vaca não comprá-lo, aí chegar em casa e descobrir que não tem um único casaco decente no armário e então voltar na loja no dia seguinte e descobrir que mudou a coleção e ontem era o último dia com descontos de 50% sobre o preço da etiqueta. As melhores: a pessoa que você está a fim também está a fim de você, qualquer episódio de Os Normais, sua tia que sempre lhe deu presentes criativos (como aquele colete de bolinhas de madeira para colocar no banco do carro) resolveu dar dinheiro esse ano. As piores: ler jornal no vento, faltar luz quando você está no elevador saindo para um compromisso para o qual já está atrasado, pisar em algo mele
Rilke, “Cartas a um jovem poeta”. . (...) Não se deve deixar enganar em sua solidão, por existir algo em si que deseja sair dela. Justamente tal desejo, se dele se servir tranqüila e sossegadamente como de um instrumento, há de ajudá-lo a estender a sua solidão sobre um vasto território. Os homens, com o auxílio das convenções, resolveram tudo facilmente e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que nós devemos agarrar-nos ao difícil. Tudo o que é vivo se agarra a ele, tudo na natureza cresce e se defende segundo a sua maneira de ser; e faz-se coisa própria nascida de si mesma e procura sê-lo a qualquer preço e contra qualquer resistência. Sabemos pouca coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita. Amar também é bom: porque o amor é difícil. O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi
"Maria Amélia lembra de uma brincadeira que fazia com os filhos. Perguntava a cada um o que mais gostava de fazer na vida. Ela nunca se esqueceu da resposta de Chico: 'Eu gosto de rir'". (Perfis do Rio: Chico Buarque, por Regina Zappa, pág. 28)
Negrinha Monteiro Lobato Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças. Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo. Ótima, a dona Inácia. Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a
Mais uma de amor Martha Medeiros Que algumas pessoas não acreditem que o homem esteve mesmo na lua, dá até pra entender, mas tem gente que não acredita em amor, e isso é imperdoável. Podemos não acreditar no que nossos olhos vêem, mas não podemos desacreditar no que sentimos. Você já ficou com a boca seca diante de uma pessoa? Já teve receio de ela estar ouvindo as batidas do seu coração? Bem, isso tudo não é prova de amor, apenas de ansiedade. Amor é outra coisa. Amor é quando você acha que a pessoa com quem você se relacionava era egoísta, possessiva e infantilóide e isso não reduz em nada a sua saudade, não impede que a coisa que você mais gostaria neste instante é de estar tocando os cabelos daquela egoísta, possessiva e infantilóide. Amor é quando você não compreende direito algumas coisas, mesmo tendo o QI mais elevado da turma, mesmo dominando o pensamento de Sócrates, Plutão e Nietzche. Perguntas simples ficam sem resposta, como por exemplo: como é que eu, sendo tão boa gente,
Amor Bastante Paulo Leminski quando eu vi você tive uma idéia brilhante foi como se eu olhasse de dentro de um diamante e meu olho ganhasse mil faces num só instante basta um instante e você tem amor bastante um bom poema leva anos cinco jogando bola, mais cinco estudando sânscrito, seis carregando pedra, nove namorando a vizinha, sete levando porrada, quatro andando sozinho, três mudando de cidade, dez trocando de assunto, uma eternidade, eu e você, caminhando junto
Essa negra fulo Jorge de Lima Ora, se deu que chegou (isso já faz muito tempo) no bangüê dum meu avô uma negra bonitinha, chamada negra Fulô. Essa negra Fulô! Essa negra Fulô! Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá) — Vai forrar a minha cama pentear os meus cabelos, vem ajudar a tirar a minha roupa, Fulô! Essa negra Fulô! Essa negrinha Fulô! ficou logo pra mucama pra vigiar a Sinhá, pra engomar pro Sinhô! Essa negra Fulô! Essa negra Fulô! Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá) vem me ajudar, ó Fulô, vem abanar o meu corpo que eu estou suada, Fulô! vem coçar minha coceira, vem me catar cafuné, vem balançar minha rede, vem me contar uma história, que eu estou com sono, Fulô! Essa negra Fulô! "Era um dia uma princesa que vivia num castelo que possuía um vestido com os peixinhos do mar. Entrou na perna dum pato saiu na perna dum pinto o Rei-Sinhô me mandou que vos contasse mais cinco". Essa negra Fulô! Essa negra Fulô! Ó Fulô! Ó Fulô! Vai botar para dormir esses meninos, Fulô! "
Anias Ninn “É como uma doença, o desejo de ver alguém, o anseio profundo e forte. E você acabou de vê-lo, e vê-lo amanhã não vai satisfazer, e a mesma doença, como uma fome, chegará até você, mais forte a cada vez que você o vê. Não, eu não expliquei isso. Eu estava trabalhando hoje, escrevendo. Minha cabeça estava ocupada: minha mente estava repleta do trabalho. Ainda assim, todo o tempo, eu estava ciente de uma dor - corrosiva - como se um pedaço de mim tivesse sido arrancado. E a mente não pudesse fazer nada sobre isso. Era físico: estava nas veias, no sangue, na pele. Eis por que as relações humanas são tão perigosas - porque a mente não tem poder sobre elas”. “Estou diabolicamente só. O que eu precisava era de alguém que pudesse me dar o que eu dou a Henry: essa atenção constante. Eu leio cada página do que ele escreve, eu acompanho suas leituras, eu respondo a suas cartas, eu o ouço, eu lembro de tudo que ele diz, eu escrevo sobre ele, eu lhe faço presentes, eu o protejo, estou p
Como será a nova namorada dele Martha Medeiros Aí terminaram o namoro. Você ficou meio magoada, ele se sentindo meio culpado, mas deram meia-volta, volver e cada um tomou seu rumo. Passam-se uns dias e surpresa: ele tem nova namorada. Claro que você foi a primeira a saber, suas amigas fizeram questão de lhe contar, afinal, adoram você. Tudo bem, tudo bem, que eles sejam felizes. Tudo bem uma pinóia. Você já arrancou toda a cutícula com a boca. Está se mordendo para saber como é sua rival. Mais bonita? Mais feia? Caiu aqui: você vai odiá-la do mesmo jeito. Digamos que ela seja mais bonita. O cabelo é mais bonito. O corpo é mais bonito. E ainda por cima o nome dela é Paula e você é Ludislene Gorete. Enfim, o cara te trocou por uma gataça. “Que deve ser burríssima. Que deve ter mau-hálito. Que deve ser sofrível na cama. E ele, francamente, tem titica de galinha na cabeça. Coisa mais fora de moda dar valor para a aparência. Está se achando o rei da cocada preta com essa 'zinha' co
Oração ao pé feminino Henfil Vem com pés de lã passear pelo meu peito. Vem de manso ou de repente, pé de anjo, vem de qualquer jeito Domar o meu espanto de ser subjugado sob os pilotis das coxas do objeto amado. Vem com uma pulseira de cobre nos artelhos, exorcizar os mil demônios que se enroscam entre os meus pentelhos. Vem ser lambido, lambuzado, entre os dedos, vem girar os calcanhares no meu rosto, torturador sádico querendo extorquir segredos. Vem me submeter a tua tirania sem idade, vem violentar e ser violentado, cair de pé, em pé de igualdade. Vem com teu exército de dedos sobre mim perplexo. Vem pedestal. Vem sereníssimo esmagar a cabeça de serpente do meu sexo.
Círculo vicioso Machado de Assis Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume: - “Quem me dera que eu fosse aquela loura estrela, Que arde no eterno azul, como uma eterna vela !” Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: - “Pudesse eu copiar-te o transparente lume, Que, da grega coluna à gótica janela, Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela...” Mas a lua, fitando o sol com azedume: - “Mísera ! Tivesse eu aquela enorme, aquela Claridade imortal que toda luz resume !“ Mas o sol, inclinando a rútila capela: - “Pesa-me esta brilhante auréola de nume... Enfara-me esta azul e desmedida umbela... Porque não nasci eu um simples vaga-lume ?”
Embriagai-vos Charles Baudelaire É necessário estar sempre bêbedo. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas - de que? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis. E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder: - É a hora da embriaguez! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.
Baleia Graciliano Ramos A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam, num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da bôca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida. Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de rôscas, semelhante a uma cauda de cascavel. Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fêz tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito. Sinha Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assusados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma p
Paulo Leminski Amor, então,também acaba? Não, que eu saiba. O que eu sei é que se transforma numa matéria-prima que a vida se encarrega de transformar em raiva. Ou em rima.
Bem no Fundo Paulo Leminski No fundo, no fundo, bem lá no fundo, a gente gostaria de ver nossos problemas resolvidos por decreto a partir desta data, aquela mágoa sem remédio é considerada nula e sobre ela — silêncio perpétuo extinto por lei todo o remorso, maldito seja que olhas pra trás, lá pra trás não há nada, e nada mais mas problemas não se resolvem, problemas têm família grande, e aos domingos saem todos a passear o problema, sua senhora e outros pequenos probleminhas.
Pergunte ao pó Paulo Leminski cresce a vida cresce o tempo cresce tudo e vira sempre esse momento cresce o ponto bem no meio do amor seu centro assim como o que a gente sente e não diz cresce dentro
Um homem com uma dor Paulo Leminski um homem com uma dor é muito mais elegante caminha assim de lado como se chegasse atrasado andasse mais adiante
Paulo Leminski Eu ontem tive a impressão que deus quis falar comigo não lhe dei ouvidos quem sou eu para falar com deus? Ele que cuide dos seus assuntos eu cuido dos meus
Apesar de tudo Martha Medeiros Apesar de tudo, continuamos amando, e este "apesar de tudo" cobre o infinito. Esta frase do filósofo Cioran expressa a extensão dos nossos obstáculos amorosos. Apesar de termos acreditado na eternidade dos nossos sentimentos e depois descobrirmos que nada mantém-se estável por muito tempo, continuamos amando. Apesar de termos sofrido noites inteiras por amores que não se concretizaram ou que foram vagos ou pueris, continuamos amando. Apesar de termos sido rejeitados, apesar de o nosso amor não ter sido suficiente para encantar o outro e fazê-lo permanecer ao nosso lado, continuamos amando. Apesar de todos os livros escritos, todas as sentenças filosóficas, todas as análises terapêuticas e todos os exemplos de paixões falidas, continuamos amando. Apesar de não termos mais 15 anos e estarmos numa idade em que os outros acreditam que o nosso coração envelheceu, continuamos amando. Apesar de a pessoa que a gente ama sentir por nós um amor de amigo a
Entre Amigos Martha Medeiros Para que serve um amigo? Para rachar a gasolina, emprestar a prancha, recomendar um disco, dar carona pra festa, passar cola, caminhar no shopping, segurar a barra. Todas as alternativas estão corretas, porém isso não basta para guardar um amigo do lado esquerdo do peito. Milan Kundera, escritor tcheco, escreveu em seu último livro, "A Identidade", que a amizade é indispensável para o bom funcionamento da memória e para a integridade do próprio eu. Chama os amigos de testemunhas do passado e diz que eles são nosso espelho, que através deles podemos nos olhar. Vai além: diz que toda amizade é uma aliança contra a adversidade, aliança sem a qual o ser humano ficaria desarmado contra seus inimigos. Verdade verdadeira. Amigos recentes custam a perceber essa aliança, não valorizam ainda o que está sendo construído. São amizades não testadas pelo tempo, não se sabe se enfrentarão com solidez as tempestades ou se serão varridos numa chuva de verão. Verem
Olavo Bilac "Ora (direis), ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!" E eu vos direi; no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos toda a noite, enquanto A via-láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir o sol saudoso e em pranto Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: "Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem quando estão contigo?" E eu vos direi: "Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e entender estrelas.
Eu não sou mãe, e não pretendo ser tão cedo. Mas elas são ótimas! É difícil, sim. Cansa, sim. Dá trabalho, sim. Mas existem centenas de motivos para, ainda assim, valer a pena ser mothern. Aí vão alguns deles: . para ser a pessoa mais importante na vida de uma criança; . para ver seu corpo mudar de forma e gerar outra pessoa; . para descobrir que a sua capacidade de amar é muito maior do que você imagina; . para entender melhor a sua mãe; . para ouvir alguém te chamar de mãe; . para ver de perto uma criança crescendo; . para ficar mais generosa; . para ter um motivo pra escorregar no toboágua; . para o seu casamento passar por uma prova de fogo; . para mudar de prioridades; . para comprar o enxoval; . para escolher o nome; . para ver alguém bem parecido com você; . para descobrir seus dotes de cantora, atriz e fotógrafa; . para alterar completamente seu relógio biológico; . para não passar o domingo vendo televisão; . para pagar menos no seguro do carro; . para parar de se preocupar co
Um conto de fadas diferente Martha Medeiros Era uma vez uma menina que, ao virar mulher, descobriu que casar era tudo o que a família esperava dela. É claro que seus pais ficavam felizes com suas boas notas na escola e com a carreira que ela havia escolhido, mas o que eles mais queriam saber, juntamente com os avós e as tias, é se ela havia conhecido alguém interessante na festa da noite anterior, e se este alguém viria a se tornar um namorado. A moça tinha sonhos de viajar, conhecer outros lugares, e a família dizia que ela conheceria quando partisse em lua-de-mel. A moça tinha vontade de dar mais intensidade à sua vida, e os familiares diziam que ela daria, assim que tivesse filhos. A moça pensou em seguir carreira política, depois pensou em ser voluntária num país africano, depois cogitou em fazer um curso de paraquedismo, mas sempre era desencorajada: "em namorar, que é bom, essa garota não pensa". Pensava sim, e namorou o Mateus, o Luis, o Jairo, o Renato, o André, o Ruy
Martha Medeiros a todos trato muito bem sou cordial, educada, quase sensata mas nada me dá mais prazer do que ser persona non grata expulsa do paraíso uma mulher sem juízo, que não se comove com nada cruel e refinada que não merece ir pro céu, uma vilã de novela mas bela, e até mesmo culta estranha, com tantos amigos e amada, bem vestida e respeitada aqui entre nós melhor que ser boazinha e não poder ser imitada
"As pessoas ficam procurando o amor como solução para todos os seus problemas quando, na realidade, o amor é a recompensa por você ter resolvido os seus problemas". Norman Mailer.
Martha Medeiros eu minto, confesso me faço de boba, verdade escondo a idade, me calo, me sinto tão mal, um inferno represento um papel, principal sou mesmo uma atriz, infeliz quem diz que eu não quero, eu consigo viver por um triz, enlouqueço te esqueço e te mato, te amo atrás de um muro, qualquer outro dia amanheço, de novo e falo bobagens, pudera não sou tão sensata, avisei sem nada de mais, me despeço
Dos Nossos Males Mário Quintana A nós bastem nossos próprios ais, Que a ninguém sua cruz é pequenina. Por pior que seja a situação da China, Os nossos calos doem muito mais...
Às seis da tarde Marina Colasanti Ás seis da tarde as mulheres choravam no banheiro. Não choravam por isso ou por aquilo, choravam porque o pranto subia garganta acima, mesmo se os filhos cresciam com boa saúde, se havia comida no fogo e se o marido lhes dava do bom e do melhor. Choravam porque no céu, além do basculante, o dia se punha, porque uma ânsia, uma dor, uma gastura era só o que sobrava dos seus sonhos. Agora às seis da tarde as mulheres regressam do trabalho, o dia se põe, os filhos crescem, o fogo espera, e elas não podem, não querem chorar na condução.
Frutos e flores Marina Colasanti Meu amado me diz que sou como maçã cortada ao meio. As sementes eu tenho é bem verdade. E a simetria das curvas Tive um certo rubor na pele lisa que não sei se ainda tenho. Mas se em abril floresce a macieira eu maçã feita e pra lá de madura ainda me desdobro em brancas flores cada vez que sua faca me traspassa.
A arte de amar Manoel Bandeira Se queres sentir a felicidade de amar, esqueça a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não na outra alma. Só em Deus - ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o seu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Dedução Maiakovski Não acabarão nunca com o amor, nem as rusgas, nem a distância. Está provado, pensado, verificado. Aqui levanto solene minha estrofe de mil dedos e faço o juramento: Amo firme, fiel e verdadeiramente.
O que aconteceu Maiakovski Mais do que é permitido, mais do que é preciso, como um delírio de poeta sobrecarregando o sonho: a pelota do coração tornou-se enorme, enorme o amor, enorme o ódio. Sob o fardo, as pernas vão vacilantes. Tu o sabes, sou bem fornido, entretanto me arrasto, apêndice do coração, vergando as espáduas gigantes. Encho-me dum leite de versos e, sem poder transbordar, encho-me mais e mais.
Canção na Plenitude Lya Luft Não tenho mais os olhos de menina nem corpo adolescente, e a pele translúcida há muito se manchou. Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura agrandada pelos anos e o peso dos fardos bons ou ruins (carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.) O que te posso dar é mais que tudo o que perdi: dou-te os meus ganhos. A maturidade que consegue rir quando em outros tempos choraria, busca te agradar quando antigamente quereria apenas ser amada. Posso dar-te muito mais do que beleza e juventude agora: esses dourados anos me ensinaram a amar melhor, com mais paciência e não menos ardor, a entender-te se precisas, a aguardar-te quando vais, a dar-te regaço de amante e colo de amiga, e sobretudo força -- que vem do aprendizado. Isso posso te dar: um mar antigo e confiável cujas marés -- mesmo se fogem -- retornam, cujas correntes ocultas não levam destroços, mas o sonho interminável das sereias.
Coexistência L. F. Veríssimo O advogado disse que tudo que eles tinham adquirido depois do casamento seria dividido entre os dois. - Parabéns - disse ele. - Você vai ficar com metade da minha alergia seborrágica de fundo nervoso. - Você já tinha caspa quando casou comigo! – reagiu ela. Ele a ignorou e perguntou ao advogado: - E o apartamento? - Isso vocês dois vão ter que decidir. - O apartamento fica perto da casa da minha mãe e da minha ginástica, eu me criei nesta zona e os vizinhos simpatizam muito mais comigo do que com você - disse ela. - O quê?! Os vizinhos me adoram. - Proponho um plebiscito - disse ela para o advogado. - Quem quer ficar comigo e quem quer ficar com ele. Sabe como é o apelido dele no prédio? - Calma, calma - pediu o advogado. - Como é meu apelido no prédio? - Calma insistiu o advogado. - isso não vem ao caso. O apartamento vocês decidem depois. Nesta sala, por exemplo, o que foi adquirido pelos dois? - Esta poltrona. *** A poltrona. O primeiro estofado que ti
Tu e Eu Veríssimo Somos diferentes, tu e eu. Tens forma e graça e a sabedoria de só saber crescer até dar pé. Eu não sei onde quero chegar e só sirvo para uma coisa - que não sei qual é! És de outra pipa e eu de um cripto. Tu,lipa Eu,calipto. Gostas de um som tempestade roque lenha muito heavy Prefiro o barroco italiano e dos alemães o mais leve. És vidrada no Lobão eu sou mais albônico. Tu,fäo. Eu,fônico. És suculenta e selvagem como uma fruta do trópico Eu já sequei e me resignei como um socialista utópico. Tu não tens nada de mim eu não tenho nada teu. Tu,piniquim. Eu,ropeu. Gostas daquelas festas que começam mal e terminam pior. Gosto de graves rituais em que sou pertinente e, ao mesmo tempo, o prior. Tu és um corpo e eu um vulto, és uma miss, eu um místico. Tu,multo. Eu,carístico. És colorida, um pouco aérea, e só pensas em ti. Sou meio cinzento, algo rasteiro, e só penso em Pi. Somos cada um de um pano uma sã e o outro insano. Tu,cano. Eu,clidiano. Dizes na cara o que te vem a ca
Confissão Leila Míccolis Dizem que o amor é cego, não nego, por isso te abro os olhos: não tenho bens nem alqueires, eu não sou flor que se cheire, nem tão boa cozinheira, (bem capaz que ainda me piches por só comer sanduíches), minha poesia é fuleira, tenho idéias de jerico, um cio meio impudico como as cadelas e as gatas, às vezes me torno chata por me opor ao que contemplo, sei que sou péssimo exemplo, por pouca coisa me grilo, talvez por mim percas quilos, eu não sei se valho a pena, iguais a mim, há centenas, desejo te ser sincera. Mas no fundo o amor espera que grudes qual carrapicho: são tão grandes meu rabicho e minha paixão por ti, que não estão no gibi... Ao te ver, viro pamonha, sem ação, e sem vergonha o meu ser inteiro goza. Por isso, pra encurtar prosa, do teu corpo, cada poro eu adoro adoro adoro...
Prêmio de consolação Leila Míccolis Há anos os homens ensinam Às mulheres a agradá-lo, a adulá-lo, a servi-lo, numa ascendência sem par. Agora elas retribuem Sempre que fingem gozar.
A mulher e a casa João Cabral de Melo Neto Tua sedução é menos de mulher do que de casa: pois vem de como és por dentro ou por detrás da fachada. Mesmo quando ela possui tua plácida elegância, esse teu reboco claro, riso franco de varandas, uma casa não é nunca só para ser contemplada; melhor: somente por dentro é possível contemplá-la. Seduz pelo que é dentro, ou será, quando se abra; pelo que pode ser dentro e suas paredes fechadas; pelo que dentro fizeram com seus vazios, com o nada; pelos espaços de dentro, não pelo que dentro guarda; pelos espaços de dentro: seus recintos, suas áreas, organizando-se dentro em corredores e salas, os quais sugerindo ao homem estâncias aconchegadas, paredes bem revestidas ou recessos bons de cavas, exercem sobre esse homem efeito igual ao que causas: a vontade de corrê-la por dentro, de visitá-la.
A rede ou o que a Sevilha não conhece João Cabral de Melo Neto Há uma lembrança para o corpo, a tua: é a de um abraço de rede, esse abraço de corpo inteiro de qualquer rede do Nordeste, da rede que tua Andaluzia, que é tão da sesta, não conhece, e mais que abraço, é o abraçar de tudo o que pode estar nele; é o abraço sem fora e nem dentro, é como vestir outra pele que ele possui e que o possui, uma rede nas veias, febre.
Amor robô Jacques Prevért Um homem escreve à máquina uma carta de amor e a máquina responde ao homem e à mão como se fosse a destinatária Tão aperfeiçoadas as máquinas a máquina de lavar cheques e cartas de amor E o homem confortavelmente instalado na sua máquina de morar lê com a máquina de ler a resposta da máquina de escrever E na sua máquina de sonhar com a sua máquina de calcular compra uma máquina de fazer amor E na sua máquina de realizar os sonhos faz amor com a máquina de escrever com a máquina de fazer amor E a máquina o engana com o mecânico Um mecânico que morre de rir.
Nós Guilherme de Almeida Quando as folhas caírem nos caminhos, ao sentimentalismo do sol poente, nós dois iremos vagarosamente, de braços dados, como dois velhinhos, e que dirá de nós toda essa gente, quando passarmos mudos e juntinhos? - "Como se amaram esses coitadinhos! como ela vai, como ele vai contente!" E por onde eu passar e tu passares, hão de seguir-nos todos os olhares e debruçar-se as flores nos barrancos... E por nós, na tristeza do sol posto, hão de falar as rugas do meu rosto hão de falar os teus cabelos brancos.
Florbela Espanca Ódio por ele? Não... Se o amei tanto, Se tanto bem lhe quis no meu passado, Se o encontrei depois de o ter sonhado, Se à vida assim roubei todo o encanto... Que importa se mentiu? E se hoje o pranto Turva o meu triste olhar, marmorizado, Olhar de monja, trágico, gelado Como um soturno e enorme Campo Santo! Ah! nunca mais amá-lo é já bastante! Quero senti-lo d’outra, bem distante, Como se fora meu, calma e serena! Ódio seria em mim saudade infinda, Mágoa de o ter perdido, amor ainda. Ódio por ele? Não... não vale a pena...
As quadras dele (II) Florbela Espanca (...) Enquanto eu longe de ti Ando, perdida de zelos, Afogam-se outros olhares Nas ondas dos teus cabelos. Dizem-me que te não queira Que tens, nos olhos, traição. Ai, ensinem-me a maneira De dar leis ao coração! (...)
Eros e Psique Fernando Pessoa ...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade. (Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio Na Ordem Templária De Portugal) Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada. Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera, Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado, Ele dela é ignorado, Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E vencendo es
Terrível Bébé, Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bonbon, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o Bébé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que a havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telephono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na bocca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a bocca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao sem hombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ophelinha gosta de um meliante e de um cevado e (...) e eu gostava que a Bébé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma crença, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece ser impossível ser escripto por um ente humano, mas
Fernando Pessoa O amor é uma companhia. Já não posso andar só pelos caminhos, Porque já não posso andar só. Um pensamento visível faz-me andar mais depressa e ver menos, E ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo. Mesmo a ausência dela é uma é uma cousa que está comigo. E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar. Se não a vejo, Imagino-a e sou forte como as árvores altas. Mas se a vejo tremo, Não sei o que é feito do que sinto na ausência dela. Todo eu sou qualquer força que me abandona. Toda a realidade olha para mim com um girassol Com a cara dela no meio.
Liberdade Fernando Pessoa Ai que prazer não cumprir um dever. Ter um livro para ler e não o fazer! Ler é maçada, estudar é nada. O sol doira sem literatura. O rio corre bem ou mal, sem edição original. E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal como tem tempo, não tem pressa... Livros são papéis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta A distinção entre nada e coisa nenhuma. Quanto melhor é quando há bruma. Esperar por D. Sebastião, Quer venha ou não! Grande é a poesia, a bondade e as danças... Mas o melhor do mundo são as crianças, Flores, música, o luar, e o sol que peca Só quando, em vez de criar, seca. E mais do que isto É Jesus Cristo, Que não sabia nada de finanças, Nem consta que tivesse biblioteca...
Fernando Pessoa (1932) Basta pensar em sentir Para sentir em pensar. Meu coração faz sorrir Meu coração a chorar. Depois de parar de andar, Depois de ficar e ir, Hei de ser quem vai chegar Para ser quem quer partir. Viver é não conseguir.
O avô e o neto Fernando Pessoa Ao ver o neto a brincar, Diz avô, entristecido: “Ah, quem me dera voltar A estar assim entretido! Quem me dera o tempo quando Castelos assim fazia, E que os deixava ficando Às vezes p’ra o outro dia; “E toda a tristeza minha Era, ao acordar p’ra vê-lo, Ver que a criada já tinha Arrumado o meu castelo”. Mas o neto não o ouve Porque está preocupado Com um engano que houve No portão para o soldado E, enquanto o avô cisma, e triste Lembra a infância que lá vai, Já mais uma casa existe Ou mais um castelo cai; E o neto, olhando afinal E vendo o avô a chorar, Diz, “Caiu, mas não faz mal: Torna-se já a arranjar”.
Poema em linha reta Álvaro de Campos Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda