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Mostrando postagens com o rótulo Manoel de Barros
O casaco Um homem estava anoitecido. Se sentia por dentro um trapo social. Igual se, por fora, usasse um casaco rasgado e sujo. Tentou sair da angústia. Isto ser: Ele queria jogar o casaco rasgado e sujo no lixo. Ele queria amanhecer. Manoel de Barros
Adoecer de nós a Natureza: - Botar aflição nas pedras (Como fez Rodin). Manoel de Barros. Roubado do blog da C4 .
Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho Manoel de Barros Com cem anos de escória uma lata aprende a rezar. Com cem anos de escombros um sapo vira árvore e cresce por cima das pedras até dar leite. Insetos levam mais de cem anos para uma folha sê-los. Uma pedra de arroio leva mais de cem anos para ter murmúrios. Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas. Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor as cores tortas. Com menos de três meses mosquitos completam a sua eternidade. Um ente enfermo de árvore, com menos de cem anos, perde o contorno das folhas. Aranha com olho de estame no lodo se despedra. Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui. Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe que os escorpiões de areia. A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo. Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno. O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas. Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele vagando por escórias... A...
Eu sou dois. E aceitamos que você empregue o seu amor em nós. Os dois Manoel de Barros Eu sou dois seres. O primeiro é fruto do amor de João e Alice. O segundo é letral: É fruto de uma natureza que pensa por imagens. Como diria Paul Valery, O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidades. O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades frases. E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.
A disfunção Manoel de Barros Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de a menos. Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos. A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica. Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica. 1 - Aceitação da inércia para dar movimento às palavras. 2 - Vocação para explorar os mistérios irracionais. 3 - Percepção de contiguidades anômalas entre verbos e substantivos. 4 - Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras. 5 - Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes. 6 - Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra. 7 - Mania de comparecer aos próprios desencontros. Essas disfunções líricas acabam por dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores.
"Uma rã se achava importante porque o rio passava nas suas margens". Lindo demais isso. Sobre importâncias Manoel de Barros Uma rã se achava importante Porque o rio passava nas suas margens. O rio não teria grande importância para a rã Porque era o rio que estava ao pé dela. Pois Pois. Para um artista aquele ramo de luz sobre uma lata desterrada no canto de uma rua, talvez para um fotógrafo, aquele pingo de sol na lata seja mais importante do que o esplendor do sol nos oceanos. Pois Pois. Em Roma, o que mais me chamou a atenção foi um prédio que ficava em frente das pombas. O prédio era do estilo bizantino do século IX. Colosso! Mas eu achei as pombas mais importantes do que o prédio. Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na Cordilheira dos Andes. O pessoal falou: seu olhar é distorcido. Eu, por certo, não saberei medir a importãncia das coisas: alguém sabe? Eu só queria construir nadeiras para botar nas minhas palavras.
O poeta Manoel de Barros Vão dizer que não existo propriamente dito. Que sou um ente de sílabas. Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém. Meu pai costumava me alertar: Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som das palavras Ou é ninguém ou zoró. Eu teria treze anos. De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que se pendia nos longes da Bolívia E veio uma iluminura em mim. Foi a primeira iluminura. Daí botei meu primeiro verso: Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem. Mostrei a obra pra minha mãe. A mãe falou: Agora você vai ter que assumir as suas irresponsabilidades. Eu assumi: entrei no mundo das imagens.
O aferidor Manoel de Barros Tenho um aferidor de Encantamentos. A uma açucena encostada no rosto de uma criança O meu Aferidor deu nota dez. A uma fuga de Bach que vi nos olhos de uma criatura O Aferidor deu nota vinte. Mas a um homem sozinho no fim de uma estrada Sentado nas pedras de suas próprias ruínas O meu Aferidor deu DESENCANTO. (O mundo é sortido, Senhor, como dizia meu pai.)
Vento Manoel de Barros   Se a gente jogar uma pedra no vento Ele nem olha para trás. Se a gente atacar o vento com uma enxada Ele nem sai sangue da bunda. Ele não dói nada. Vento não tem tripa. Se a gente enfiar uma faca no vento Ele nem faz ui. A gente estudou no Colégio que vento é o ar em movimento. E que ar em movimento é vento. Eu quis implantar uma costela no vento. A costela não parava nem. Hoje eu tasquei uma pedra no organismo do vento. Depois me ensinaram que vento não tem organismo. Fiquei estudado.
A Carol postou no blog dela e eu reposto aqui. Porque é lindo e porque ela e o blog são ótimos. O apanhador de desperdícios Manoel de Barros Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas. Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.
Manoel de Barros. Era um caranguejo muito se achante. Ele se achava idôneo para flor. Passava por nossa casa Sem nem olhar de lado. Parece que estava montado num coche de princesa. Ia bem devagar Conforme o protocolo A fim de receber aplausos. Muito achante demais. Nem parou para comer goiaba. (Acho que quem anda de coche não come goiaba.) Ia como se fosse tomar posse de deputado. Mas o coche quebrou E o caranguejo voltou a ser idôneo para mangue.
Poema Manoel de Barros A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado e chorei. Sou fraco para elogios.
Manoel de Barros No começo era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: “Eu escuto a cor dos passarinhos.” A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois Em poesia que é a voz do poeta, que é a voz de fazer nascimentos - O verbo tem que pegar delírio.
Manoel de Barros . O poema é antes de tudo um inutensílio. Hora de iniciar algum convém se vestir de roupa de trapo. . Há quem se jogue debaixo de carro nos primeiros instantes. . Faz bem uma janela aberta. Uma veia aberta. . Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema Enquanto vida houver . Ninguém é pai de um poema sem morrer
Mandado pela Carlita, venezuelana que eu amo: Manoel de Barros Há um comportamento de eternidade nos caramujos. Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem um dia inteiro até chegar amanhã. O próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos caramujos. Eles carregam com paciência o início do mundo. No geral os caramujos têm uma voz desconformada por dentro. Talvez porque tenham a boca trôpega. Suas verdades podem não ser. Desde quando a infância nos praticava na beira do rio Nunca mais deixei de saber que esses pequenos moluscos Ajudam as árvores a crescer. E achei que esta história só caberia no impossível. Mas não; ela cabe aqui também.
Uma didática da invenção Manoel de Barros I Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos f) Como pegar na voz de um peixe g) Qual o lado da noite que umedece primeiro. etc etc etc Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios. II Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha. Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma. III Repetir repetir - até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo. IV No tratado da grandeza do ínfimo estava escrito: Poesia é quando a tarde está competente para dálias. É quando Ao lado de um pardal o dia...
Tartaruga Manoel de Barros Desde a tartaruga nada não era veloz. Depois é que veio o forde 22 E o asa-dura (máquina avoadora que imita os passarinhos, e tem por alcunha avião). Não atinei até agora por que é preciso andar tão depressa. Até há quem tenha cisma com a lesma porque ela anda muito depressa. Eu tenho. A gente só chega no fim quando o fim chega! Então pra que atropelar?
Infantil Manoel de Barros O menino ia no mato E a onça comeu ele. Depois o caminhão passou por dentro do corpo do menino E ele foi contar para a mãe. A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que o caminhão passou por dentro do seu corpo? É que o caminhão só passou renteando meu corpo E eu desviei depressa. Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia. Eu não preciso de fazer razão.
A namorada Manoel de Barros Havia um muro alto entre nossas casas. Difícil de mandar recado para ela. Não havia e-mail. O pai era uma onça. A gente amarrava o bilhete numa pedra presa por um cordão E pinchava a pedra no quintal da casa dela. Se a namorada respondesse pela mesma pedra Era uma glória! Mas por vezes o bilhete enganchava nos galhos da goiabeira E então era agonia. No tempo do onça era assim.
Diário de Bugrinha (Excertos) 22.1.1925 - O nome de um passarinho que vive no cisco é joão­ninguém. Ele parece com Bernardo. 23.2 - Lagartixas têm odor verde. 2.3 - Formiga é um ser tão pequeno que não agüenta nem neblina. Bernardo me ensinou: Para infantilizar formigas é só pingar um pouquinho de água no coração delas. Achei fácil. 2.3 - Quem ama exerce Deus — a mãe disse. Uma açucena me ama. Uma açucena exerce Deus? 2.3 - Eu queria crescer pra passarinho... 5.3 - A voz de meu avô arfa. Estava com um livro debaixo dos olhos. Vô! o livro está de cabeça pra baixo. Estou deslendo. 5.6 - O frio se encolheu nos passarinhos. Ó noite congelada de jacintos! Eu estou transida de pétalas. 7.8 - O pai trouxe do campo um filhote de urubu. Ele é branco e já fede. 12.8 - As garças descem nos brejos que nem brisas. Todas as manhãs. 10.9 - Um sapo feneceu 3 borboletas de uma vez atrás de casa. Ele fazia uma estultícia? 13.9 - A mãe bateu no Mano Preto. Falou que eu não apanhava porque não dei moti...