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Mostrando postagens com o rótulo Affonso Romano de Sant'anna
Vai, ano velho, vai de vez, vai com tuas dívidas e dúvidas, vai, dobra a ex- quina da sorte, e no trinta e um, à meia-noite, esgota o copo e a culpa do que nem me lembro e me cravou entre janeiro e dezembro. Vai, leva tudo: destroços, ossos, fotos de presidentes, beijos de atrizes, enchentes, secas, suspiros, jornais. Vade retrum, pra trás, leva pra escuridão quem me assaltou o carro, a casa e o coração. Não quero te ver mais, só daqui a anos, nos anais, nas fotos do nunca-mais. Vem, Ano Novo, vem veloz, vem em quadrigas, aladas, antigas ou jatos de luz moderna, vem, paira, desce, habita em nós, vem com cavalhadas, folias, reisados, fitas multicores, rebecas, vem com uva e mel e desperta em nossso corpo a alegria, escancara a alma, a poesia, e, por um instante, estanca o verso real, perverso, e sacia em nós a fome - de utopia. Vem na areia da ampulheta com a semente que contivesse outra se- mente que contivesse ou- tra semente ou pérola na casca da ostra como se se outra se- mente pude...
Separação Affonso Romano de Sant'Anna Desmontar a casa e o amor. Despregar os sentimentos das paredes e lençóis. Recolher as cortinas após a tempestade das conversas. O amor não resistiu às balas, pragas, flores e corpos de intermeio. Empilhar livros, quadros, discos e remorsos. Esperar o infernal juizo final do desamor. Vizinhos se assustam de manhã ante os destroços junto à porta: -pareciam se amar tanto! Houve um tempo: uma casa de campo, fotos em Veneza, um tempo em que sorridente o amor aglutinava festas e jantares. Amou-se um certo modo de despir-se de pentear-se. Amou-se um sorriso e um certo modo de botar a mesa. Amou-se um certo modo de amar. No entanto, o amor bate em retirada com suas roupas amassadas, tropas de insultos malas desesperadas, soluços embargados. Faltou amor no amor? Gastou-se o amor no amor? Fartou-se o amor? No quarto dos filhos outra derrota à vista: bonecos e brinquedos pendem numa colagem de afetos natimortos. O amor ruiu e tem pressa de ir embora enve...
Limites do amor Affonso Romano de Sant'Anna Condenado estou a te amar nos meus limites até que exausta e mais querendo um amor total, livre das cercas, te despeça de mim, sofrida, na direção de outro amor que pensas ser total e total será nos seus limites da vida. O amor não se mede pela liberdade de se expor nas praças e bares, em empecilho. É claro que isto é bom e, às vezes, sublime. Mas se ama também de outra forma, incerta, e este o mistério: - ilimitado o amor às vezes se limita, proibido é que o amor às vezes se liberta. Ele quis morrer para arrasar a morte e voltar.
Indecisão amorosa Afonso Romano de Sant'Anna - Então me digo: "Não vou mais vê-la e no dia seguinte quero tê-la. Então me digo: - "É a última vez" e me resigno. Mas quando anoitece sou eu quem ligo. - "Começo a esquecê-la", me repito. E numa esquina invento vê-la. De novo afirmo: Melhor parar e aí começo a desesperar. O tempo todo a estou deixando e mais a deixo partido ao seu amor regresso e partindo vou ficando.
Affonso Romano de Sant'Anna A primeira vez que entendi do mundo alguma coisa foi quando na infância cortei o rabo de uma lagartixa e ele continuou se mexendo. De lá pra cá fui percebendo que as coisas permanecem vivas e tortas que o amor não acaba assim que é difícil extirpar o mal pela raiz. A segunda vez que entendi do mundo alguma coisa foi quando na adolescência me arrancaram do lado esquerdo três certezas e eu tive que seguir em frente. De lá pra cá aprendi a achar no escuro o rumo e sou capaz de decifrar mensagens seja nas nuvens ou no grafite de qualquer muro.
Os desaparecidos Affonso Romano de Sant’Anna De repente, naqueles dias, começaram a desaparecer pessoas, estranhamente. Desaparecia-se. Desaparecia-se muito naqueles dias. Ia-se colher a flor oferta e se esvanecia. Eclipsava-se entre um endereço e outro ou no táxi que se ia. Culpado ou não, sumia-se ao regressar do escritório ou da orgia. Entre um trago de conhaque e um aceno de mão, o bebedor sumia. Evaporava o pai ao encontro da filha que não via. Mães segurando filhos e compras, gestantes com tricots ou grupos de estudantes desapareciam. Desapareciam amantes em pleno beijo e médicos em meio à cirurgia. Mecânicos se diluíam - mal ligavam o tôrno do dia. Desaparecia-se. Desaparecia-se muito naqueles dias. Desaparecia-se a olhos vistos e não era miopia. Desaparecia-se até a primeira vista. Bastava que alguém visse um desaparecido e o desaparecido desaparecia. Desaparecia o mais conspícuo e o mais obscuro sumia. Até deputados e presidentes esvaneciam. Sacerdotes, igualmente, levitando i...
Epitáfio para o século XX Afonso Romano de Sant’anna 1.Aqui jaz um século onde houve duas ou três guerras mundiais e milhares de outras pequenas e igualmente bestiais. 2.Aqui jaz um século onde se acreditou que estar à esquerda ou à direita eram questões centrais. 3.Aqui jaz um século que quase se esvaiu na nuvem atômica. Salvaram-no o acaso e os pacifistas com sua homeopática atitude -nux vômica. 4.Aqui jaz o século que um muro dividiu. Um século de concreto armado, canceroso, drogado,empestado, que enfim sobreviveu às bactérias que pariu. 5.Aqui jaz um século que se abismou com as estrelas nas telas e que o suicídio de supernovas contemplou. Um século filmado que o vento levou. 6.Aqui jaz um século semiótico e despótico, que se pensou dialético e foi patético e aidético. Um século que decretou a morte de Deus, a morte da história, a morte do homem, em que se pisou na Lua e se morreu de fome. 7.Aqui jaz um século que opondo classe a classe quase se desclassificou. Século cheio de anát...
Carta aos mortos Affonso Romano de Sant’Anna Amigos, nada mudou em essência. Os salários mal dão para os gastos, as guerras não terminaram e há vírus novos e terríveis, embora o avanço da medicina. Volta e meia um vizinho tomba morto por questão de amor. Há filmes interessantes, é verdade, e como sempre, mulheres portentosas nos seduzem com suas bocas e pernas, mas em matéria de amor não inventamos nenhuma posição nova. Alguns cosmonautas ficam no espaço seis meses ou mais, testando a engrenagem e a solidão. Em cada olimpíada há recordes previstos e nos países, avanços e recuos sociais. Mas nenhum pássaro mudou seu canto com a modernidade. Reencenamos as mesmas tragédias gregas, relemos o Quixote, e a primavera chega pontualmente cada ano. Alguns hábitos, rios e florestas se perderam. Ninguém mais coloca cadeiras na calçada ou toma a fresca da tarde, mas temos máquinas velocíssimas que nos dispensam de pensar. Sobre o desaparecimento dos dinossauros e a formação das galáxias não avança...
Balada dos Casais Affonso Romano de Sant’Anna Os casais são tão iguais, por isto se casam e anunciam nos jornais. Os casais são tão iguais, por isto se beijam fazem filhos, se separam prometendo não se casarem jamais. Os casais são tão iguais que além de trocar fraldas, tirar fotos, acabam se tornando avós e pais. Os casais são tão iguais que se amam e se insultam e se matam na realidade e nos filmes policiais. Os casais são tão iguais que embora jurem um ao outro amor eterno sempre querem mais.
Fascínio Affonso Romano de Sant’Anna Casado, continuo a achar as mulheres irresistíveis. Não deveria, dizem. Me esforço. Aliás, já nem me esforço. Abertamente me ponho a admirá-las. Não estou traindo ninguém, advirto. Como pode o amor trair o amor? Amar o amor num outro amor é um ritual que, amante, me permito.
Entrevista Affonso Romano de Sant’anna Telefonam-me do jornal: -Fale de amor- diz o repórter, como se falasse do assunto mais banal. -Do amor? -Me rio informal. Mas ele insiste: -Fale-me de amor- sem saber, displicente, que essa palavra é vendaval. -Falar de amor?-Pondero: o que está querendo, afinal? Quer me expor no circo da paixão como treinado animal? -Fala...-insiste o outro -Qualquer coisa. Como se o amor fosse “qualquer coisa” prá se embrulhar no jornal. -Fale bem, fale mal, uma coisa rapidinha -ele insiste,como se ignorasse que as feridas de amor não se lavam com água e sal. Ele perguntando eu resistindo, porque em matéria de amor e de entrevista qualquer palavra mal dita é fatal.
Que presente te dar Affonso Romano de Sant’Anna Que presente te dar, eu que tanto quero e pouco dou, porque mesquinho, egoísta, distraído não te cumulo daquilo que deveria cumular? Deveria desatar inúmeros presentes ao pé da árvore, entreabrindo jóias, tecidos, requintados e pessoais objetos, ou deveria dar-te não o que posso buscar lá fora, mas o que, em mim, está fechado e mal sei desembrulhar? Gostaria de dar-te coisas naturais, feitas com a mão como fazem os camponeses, os artesãos, como faz a mulher que ama e prepara o Natal com seus dedos e receitas, adornos e atenções. Te dar, talvez, um pedaço de praia primitiva, como aquelas do Nordeste, ou de antigamente - Búzios e Cabo Frio: um pedaço de mar das ilhas do Caribe, onde a água e o mar são transparentes e onde a areia é fina e brilhante e, sozinhos, habitam a eternidade e os amantes. Te dar aquele verso de canção um dia ouvida não sei mais onde, se numa tarde de chuva, se entre os lençóis cansados; um verso, uma canção...
Assombros Affonso Romano de Sant’Anna Às vezes, pequenos grandes terremotos ocorrem do lado esquerdo do meu peito. Fora, não se dão conta os desatentos. Entre a aorta e a omoplata rolam alquebrados sentimentos. Entre as vértebras e as costelas há vários esmagamentos. Os mais íntimos já me viram remexendo escombros. Em mim há algo imóvel e soterrado em permanente assombro.