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Mostrando postagens com o rótulo Ferreira Gullar
Subversiva A poesia quando chega não respeita nada. Nem pai nem mãe. Quando ela chega de qualquer de seus abismos desconhece o Estado e a Sociedade Civil infringe o Código de Águas relincha como puta nova em frente ao Palácio da Alvorada. E só depois reconsidera: beija nos olhos os que ganham mal embala no colo os que têm sede de felicidade e de justiça. E promete incendiar o país. Ferreira Gullar
Toada à toa A vida, apenas se sonha que é plena, bela ou o que for. Por mais que nela se ponha é o mesmo que nada por. Pois é certo que o vivido - na alegria ou desespero - como o gás é consumido... Recomeçamos de zero. Ferreira Gullar
O meu acalanto Ferreira Gullar Por que motivo Verter o pranto? O canto existe. Por que motivo Lembrar a dor? A flor existe. Por que motivo Pensar na morte? (A morte é triste!)
Canção de preferência Não quero teus seios túmidos de desejos maternais. Se teus seios são redondos, há muitos outros iguais. Não quero teus lábios úmidos (beijos, carícias, corais). Se teus lábios são vermelhos, existem lábios iguais. Não desejo teus cabelos - lembranças de vendavais - Se teus cabelos são belos, sei de cabelos iguais. Não, não desejo teu corpo de contornos sugestivos, de braços, de tudo o mais... Só quero teus olhos - teus olhos sem adjetivos - teus olhos originais! Ferreira Gullar
O que se foi O que se foi se foi. Se algo ainda perdura é só a amarga marca na paisagem escura. Se o que se foi regressa, traz um erro fatal: falta-lhe simplesmente ser real. Portanto, o que se foi, se volta, é feito morte. Então por que me faz o coração bater tão forte? Ferreira Gullar
O açúcar Ferreira Gullar O branco açúcar que adoçará meu café nesta manhã de Ipanema não foi produzido por mim nem surgiu dentro do açucareiro por milagre. Vejo-o puro e afável ao paladar como beijo de moça, água na pele, flor que se dissolve na boca. Mas este açúcar não foi feito por mim. Este açúcar veio da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia. Este açúcar veio de uma usina de açúcar em Pernambuco ou no Estado do Rio e tampouco o fez o dono da usina. Este açúcar era cana e veio dos canaviais extensos que não nascem por acaso no regaço do vale. Em lugares distantes, onde não há hospital nem escola, homens que não sabem ler e morrem aos vinte e sete anos plantaram e colheram a cana que viraria açúcar. Em usinas escuras, homens de vida amarga e dura produziram este açúcar branco e puro com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
Ferreira Gullar No mundo há muitas armadilhas e o que é armadilha pode ser refúgio e o que é refúgio pode ser armadilha Tua janela por exemplo aberta para o céu e uma estrela a te dizer que o homem é nada ou a manhã espumando na praia a bater antes de Cabral, antes de Tróia (há quatro séculos Tomás Bequimão tomou a cidade, criou uma milícia popular e depois foi traído, preso, enforcado) No mundo há muitas armadilhas e muitas bocas a te dizer que a vida é pouca que a vida é louca E por que não a Bomba? te perguntam. Por que não a Bomba para acabar com tudo, já que a vida é louca? Contudo, olhas o teu filho, o bichinho que não sabe que afoito se entranha à vida e quer a vida e busca o sol, a bola, fascinado vê o avião e indaga e indaga A vida é pouca a vida é louca mas não há senão ela. E não te mataste, essa é a verdade. Estás preso à vida como numa jaula. Estamos todos presos nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver ...
Estranheza do mundo Ferreira Gullar Olho a árvore e indago: está aí para quê? O mundo é sem sentido quanto mais vasto é. Esta pedra esta folha este mar sem tamanho fecham-se em si, me repelem. Pervago em um mundo estranho. Mas em meio à estranheza do mundo, descubro uma nova beleza com que me deslumbro; é teu doce sorriso é tua pele macia são teus olhos brilhando é essa tua alegria. Olho a árvore e já não pergunto "para quê"? A estranheza do mundo se dissipa em você.
A alegria Ferreira Gullar O sofrimento não tem nenhum valor. Não acende um halo em volta de tua cabeça, não ilumina trecho algum de tua carne escura (nem mesmo o que iluminaria a lembrança ou a ilusão de uma alegria). Sofre tu, sofre um cachorro ferido, um inseto que o inseticida envenena. Será maior a tua dor que a daquele gato que viste a espinha quebrada a pau arrastando-se a berrar pela sarjeta sem ao menos poder morrer? A justiça é moral, a injustiça não. A dor te iguala a ratos e baratas que também de dentro dos esgotos espiam o sol e no seu corpo nojento de entre fezes querem estar contentes.
Menos a mim Ferreira Gullar Conheço a aurora com seu desatino Conheço o amanhecer com o seu tesouro Conheço as andorinhas sem destino Conheço rios sem desaguadouros Conheço o medo do princípio ao fim Conheço tudo, conheço tudo Menos a mim. Conheço o ódio e seus argumentos Conheço o mar e suas ventanias Conheço a esperança e seus tormentos Conheço o inferno e suas alegrias Conheço a perda do princípio ao fim Conheço tudo, conheço tudo Menos a mim. Mas depois que chegaste de algum céu Com teu corpo de sonho e margarida Pra afinal revelar-me quem sou eu Posso afirmar enfim Que não conheço nada desta vida Que não conheço nada, nada, nada Nem mesmo a mim.
Dois e dois: quatro Ferreira Gullar Como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena embora o pão seja caro e a liberdade pequena. Como teus olhos são claros e a tua pele, morena como é azul o oceano e a lagoa, serena como um tempo de alegria por trás do terror me acena e a noite carrega o dia no seu colo de açucena - sei que dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena mesmo que o pão seja caro e a liberdade, pequena.
Voltas para casa Ferreira Gullar Depois de um dia inteiro de trabalho voltas para casa, cansado. Já é noite em teu bairro e as mocinhas de calças compridas desceram para a porta após o jantar. Os namorados vão ao cinema. As empregadas surgem das entradas de serviço. Caminhas na calçada escura. Consumiste o dia numa sala fechada, lidando com papéis e números. Telefonaste, escreveste, irritações e simpatias surgiram e desapareceram no fluir dessas horas. E caminhas, agora, vazio, como se nada acontecera. De fato, nada te acontece, exceto talvez o estranho que te pisa o pé no elevador e se desculpa. Desde quando tua vida parou? Falas dos desastres, dos crimes, dos adultérios, mas são leituras de jornal. Fremes ao pensar em certo filme que viste: a vida, a vida é bela! A vida é bela mas não a tua. Não a de Pedro, de Antônio, de Jorge, de Júlio, de Lúcia, de Míriam, de Luísa... Às vezes pensas com nostalgia nos anos de guerra, o horizonte de pólvora, o cabrito. Mas a guerra agora é outra. C...
Subversiva Ferreira Gullar A poesia quando chega não respeita nada. Nem pai nem mãe. Quando ela chega de qualquer de seus abismos desconhece o Estado e a Sociedade Civil infringe o Código de Águas relincha como puta nova em frente ao Palácio da Alvorada. E só depois reconsidera: beija nos olhos os que ganham mal embala no colo os que têm sede de felicidade e de justiça E promete incendiar o país.
Filhos Ferreira Gullar Daqui escutei quando eles chegaram rindo e correndo entraram na sala e logo invadiram também o escritório (onde eu trabalhava) num alvoroço e rindo e correndo se foram com sua alegria se foram Só então me perguntei por que não lhes dera maior atenção se há tantos e tantos anos não os via crianças já que agora estão os três com mais de trinta anos.
Documentário sobre Vinícius de Moraes. Apesar de amar Chico Buarque e Edu Lobo, o que eu queria de verdade ter postado aqui era só o depoimento do Ferreira Gullar, que começa aos 1:15m desse vídeo que eu encontrei (e, originalmente, não inclui as imagens chatinhas que acrescentaram no final, aos 3:00m, depois do Vinícius e do Tom bêbados, que também já postei aqui). E é isso. A vida é uma invenção. Então é melhor inventar coisa boa.
Coito Ferreira Gullar Todos os movimentos do amor são noturnos mesmo quando praticados à luz do dia Vem de ti o sinal no cheiro ou no tato que faz acordar o bicho em seu fosso: na treva, lento, se desenrola e desliza em direção a teu sorriso Hipnotiza-te com seu guizo envolve-te em seus anéis corredios beija-te a boca em flor e por baixo com seu esporão te fende te fode e se fundem no gozo depois desenfia-se de ti a teu lado na cama recupero a minha forma usual.
Aprendizado Ferreira Gullar Do mesmo modo que te abriste à alegria abre-te agora ao sofrimento que é fruto dela e seu avesso ardente. Do mesmo modo que da alegria foste ao fundo e te perdeste nela e te achaste nessa perda deixa que a dor se exerça agora sem mentiras nem desculpas e em tua carne vaporize toda ilusão que a vida só consome o que a alimenta.
Cantiga para não morrer Ferreira Gullar Quando você for se embora, moça branca como a neve, me leve. Se acaso você não possa me carregar pela mão, menina branca de neve, me leve no coração. Se no coração não possa por acaso me levar, moça de sonho e de neve, me leve no seu lembrar. E se aí também não possa por tanta coisa que leve já viva em seu pensamento, menina branca de neve, me leve no esquecimento.
O primeiro foi a Marina que me ensinou - eu aprendi e amei. O segundo é o meu preferido dele - tomara que ela goste. Aprendizado Ferreira Gullar Do mesmo modo que te abriste à alegria abre-te agora ao sofrimento que é fruto dela e seu avesso ardente. Do mesmo modo que da alegria foste ao fundo e te perdeste nela e te achaste nessa perda deixa que a dor se exerça agora sem mentiras nem desculpas e em tua carne vaporize toda ilusão que a vida só consome o que a alimenta. *** Cantiga para não morrer Ferreira Gullar Quando você for se embora, moça branca como a neve, me leve. Se acaso você não possa me carregar pela mão, menina branca de neve, me leve no coração. Se no coração não possa por acaso me levar, moça de sonho e de neve, me leve no seu lembrar. E se aí também não possa por tanta coisa que leve já viva em seu pensamento, menina branca de neve, me leve no esquecimento.
Atendendo a pedidos: Não-coisa Ferreira Gullar O que o poeta quer dizer no discurso não cabe e se o diz é pra saber o que ainda não sabe. Uma fruta uma flor um odor que relume... Como dizer o sabor, seu clarão seu perfume? Como enfim traduzir na lógica do ouvido o que na coisa é coisa e que não tem sentido? A linguagem dispõe de conceitos, de nomes mas o gosto da fruta só o sabes se a comes só o sabes no corpo o sabor que assimilas e que na boca é festa de saliva e papilas invadindo-te inteiro tal do mar o marulho e que a fala submerge e reduz a um barulho, um tumulto de vozes de gozos, de espasmos, vertiginoso e pleno como são os orgasmos No entanto, o poeta desafia o impossível e tenta no poema dizer o indizível: subverte a sintaxe implode a fala, ousa incutir na linguagem densidade de coisa sem permitir, porém, que perca a transparência já que a coisa é fechada à humana consciência. O que o poeta faz mais do que mencioná-la é torná-la aparência pura — e iluminá-la. Toda coisa tem pe...