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Caminhão
Tati Bernardi

O mundo vê um passinho pra trás. Mas em algum lugar do cosmos, ouve-se um caminhão da Granero frear. Um barulho imenso, desengonçado, batem atrás, cercas arrancadas, quase cai no fim do mundo, móveis baratos despedaçados pela cidade.
O tempo todo me dizendo menos. Menos. Pra aguentar, por favor. Pra ter alguma coisa, qualquer coisa. Duas semanas. Um mês. Menos. Menos dor, menos amor, menos ódio, menos vontade de fazer cortar. De sangrar pra fora pra poder ser menos. Por favor.
Sorria como a moça da mesa ao lado, coloque um montinho de cabelo atrás da orelha, alongue um pouco o pescoço. Seu olhar está perdido porque pra poder estar naquela mesa ela foi matando pouco a pouco sua ferocidade. Mas ela toma chá e sorri. E você? Você mais uma vez vai voltar cheia de razão e sozinha. Cheia de tudo que não esquenta o pé. Cheia das facas enfincadas em volta do coração. Mas pensando “ainda falta o centro, ainda posso dar mais uma chance”.
O tempo todo maquiando o caminhão, para que pareça uma minivan ou qualquer coisa tão desengonçada e apressada quanto, mas mais cabível. Que possa estar na estrada que todo mundo está parado, o eterno trânsito de chegar nesse lugar que a gente acha que é o único porque estão todos lá.
E no meu ouvido, o tempo todo soprando. Esqueça isso, você não cabe, você não combina, a estrada não é feita pra você, você só pesa nela, só atrapalha, só é feio e odiado. É isso, não se desvira caminhão. Se é e pronto. Solitário demais, terrível demais. Mas pro outro lado, está vazio. Tem espaço pra você. A dor de virar um carro família, um carro esporte, um carro compacto. Não aguento mais, não aguento mais querer me refilar, não aguento mais querer mudar a química do meu cérebro, não aguento mais pedir perdão. Não, caminhão, tantos anos tentando, não, você não pode, não consegue, é assim. Do outro lado, uma estrada imensa. O caminho claro, bonito e sem buracos, dos que desistem.
Isso, mais uma vez, mas dessa sem voltar. Você não sabe amar, caminhão. Não pode. Não é feito pra você. Dê meia volta, por favor, sem atropelar, sem matar, sem cair, sem levar ninguém. Na tristeza dura de quem tem tanto tamanho mas não tem força pra suportar. De quem tem tanto tamanho e não consegue por medo em ninguém. De quem precisa tanto de abraço mas é grande demais pra sentir os braços em volta. De quem poderia estraçalhar os carros família mas só sente o peso insuportável de ser minúsculo perto deles.
Claustrofobia, pânico, insuportável. E então, o som, mais uma vez, puxar o freio, largar a mão, dar meia volta. Tchau, meu amor. Olhe quantos carros pequenos. Não queira mais saber dessa grossura destrambelhada que só leva mudanças porque ir embora parece um lugar com mais ar. Se você não pode ver meu coração de carruagem, ou sei lá que carro poético poderíamos imaginar agora, eu também não quero mais ser nenhuma outra coisa.
De todo mundo que eu vi de costas, partindo, foi a vez que mais doeu. Talvez porque um pouco antes, quando eu ainda amava sua nuca e sua eterna mochila nas costas como amei poucas coisas na vida, você se virou, apontou o dedo pra mim, e gritou, com pouco ou nenhum carinho: você é um caminhão! Caminhão! Caminhão!
E eu sei, e eu tentei mais do que nunca, e eu quis mais do que nunca. E eu achei que os caminhões também pudessem ter donos e direções e medalinhas. Você também me usou pra levar sua mudança e voltar vazia das suas coisas é a coisa mais triste que já aconteceu na minha vida.

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