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Feliz Ano Novo (escrito em 1996, mas atemporal)
Arnaldo Jabor

O ano de ver através do vidro o eclipse do sol contra a neblina pela janela da infância, o ano de ver as primeiras imagens de minha mãe, que era uma Greta Garbo linda com ombros altos e cabelo de coque "bomba atômica" e lábios vermelhos, o ano da coqueluche em que meu pai me levou de avião até 4.000 metros para curar a tosse entre nuvens, o ano de temer o quarto onde meus pais conceberiam minha irmã, o ano de olhar árvores, bichos e gente como se eu morasse fora do mundo (mistério que até hoje dura), o ano do medo de levar porrada nas ruas da infância,.o ano das pernas das mulheres, colunas altas e distantes (até hoje), o ano dos fantasmas do fundo do corredor, o ano do cachorro atropelado, o ano dos meninos se comendo de solidão, o ano de ficar olhando o vento no quintal, o ano dos formigueiros, o ano do sarampo e sua lâmpada vermelha, o ano da catapora, o ano da luz azul do quarto da pneumonia de minha irmã, o ano da cabeça quebrada, o ano da cara quebrada, o ano de entender o porquê dos miseráveis do morro da Mangueira perto de minha casa, o ano de ver o primeiro filme de minha vida, o "Ladrão de Bagdá", e ficar sonhando com as coxas da odalisca no tapete voador, o ano dos balões no céu, o ano do Mercury "grená" de meu pai brilhando na luz da rua, o ano do cuspe, o ano da porrada na esquina, o ano dos palavrões, o ano da "merda" e da "puta que pariu", o ano da inveja, o ano da bicicleta, o ano da primeira namorada que me tratava como nada, o ano de temer a Deus e de contar meus crimes aos padres negros de quem eu beijava a mão, o ano em que um padre me deu um beijo na boca e eu fugi com pânico na alma, o ano do Porcolino, do Pernalonga, o ano do Hortelino Trocaletra, das mil e uma noites, o ano da mula-sem-cabeça e do mendigo que dava mijo para a mãe, o ano da camisa-de-vênus boiando na beira da praia, o ano do negro comendo a empregada no quarto de passar roupa, o ano da febre, o ano da violência dos colegas de colégio, o ano dos padres jesuítas sofrendo de solidão nas clausuras e o ano das lâmpadas tristes das noites do colégio, o ano das velas de cera na igreja, o ano dos paramentos, o ano do coroinha sem fé, o ano do covarde, o ano do perigo de ser currado nos fundos do colégio, o ano do soco na cara do mais forte e do sangue no nariz do valentão, o ano da descoberta do orgulho, o ano do Tarzan, o ano do Super-Homem, o ano da porra, o ano da punheta de esguicho que ia até o teto de ladrilho por causa da primeira mulher de biquíni na praia, o ano da punheta pela empregada de peitos grandes e que deixava quase tudo, o ano da dor nos rins, o ano de entrar no porão com a menina, o ano de sentir o gosto de cuspe da menina, o ano de sentir o cheiro do entrepernas da menina e ficar com aquele cheiro até hoje, o ano da primeira mulher e, antes da primeira mulher, o ano da descoberta da literatura e de Rimbaud e o ano de ficar escrevendo o dia inteiro numa febre de descobrir qualquer coisa que ainda acho que vou achar, o ano agora sim, da primeira mulher, uma aeromoça louca da Panair que parecia uma odalisca caída do céu, o ano do meu corpo e do corpo da mulher, o ano das lágrimas quentes, o ano da solidão, o ano das pernas cruzadas dos primeiros puteiros visitados, o ano do Mangue, da indescritível visão do Mangue que só Segall conheceu, com as mil mulheres tremendo a língua para fora e de calça e sutiã nas calçadas, o ano dos bordéis antigos da luz mortiça, o ano das coxas, dos peitos, o ano cabeludo, o ano oleoso, o ano das peles, o ano dos vasos de louça, o ano de nada entender, o ano da gonorréia, o ano de Thereza e de comer o primeiro amor e de flutuar de paixão a um palmo das calçadas de Copacabana, o ano da lua dourada, do sol vermelho, o ano de Ipanema, de Leila Diniz, o ano dos gritos da mulher amada no colchão sujo e esfiapado que era um aparelho do Partido Comunista numa noite de chuva, o ano do amor e da revolução, as duas coisas se confundindo ("serão as bombas ou meu coração batendo?" diria o Bogart em "Casablanca"), o ano da UNE pegando fogo, o ano dos exilados, o ano de Corisco, o ano de Tom e Vinicius, o ano do "Carcará", o ano do cinema novo da noite negra do Ato 5, o ano que não terminou, o ano da boca fechada, o ano da boca no cano de descarga, o ano do nervo do dente exposto na boca do torturado, o ano das unhas arrancadas, o ano dos gritos, o ano dos guerrilheiros suicidas, o ano de cortar a barriga com a faca de bambu, o ano de cortar os pulsos com gilete enferrujada, o ano das cabeças muito loucas, o ano de viver perigosamente, o ano da mescalina e do ácido, o ano das pernas e dos braços virando cobras na "bad trip" da beira da praia, o ano das ondas vermelhas e céus tangerina, o ano de Copacabana virando gelatina colorida, o ano de Janis Joplin de porre comigo num puteiro baiano cantando ponto de candomblé, o ano da esperança nova, o ano de Nelson Rodrigues, de Darlene Glória, o ano das filhas nascendo dentro de um buraco estrelado, o ano da esperança de sentido, o ano da inocência, o ano da ingenuidade, o ano do leite, o ano do ventre molhado, o ano dos quartos escuros, o ano da vida, o ano do sol, o ano do jambo vermelho, o ano das formigas, o ano das bonecas, o ano do olho furado, o ano de ficar louco, o ano do corno, o ano do babaca, o ano de comer mulher, o ano de chorar, o ano de aprender a viver de novo, o ano do "vamos ver", o ano do "que será o amanhã?", o ano do cachorro, o ano da vaca louca, o ano da cachorra no ar, o ano da beira do abismo, o ano da volta à democracia, o ano do não, o ano do sim, o ano de Collor, o ano do Itamar, o ano da hiperinflação, o ano da inflação zero, o ano dos Mamonas, o ano dos caruarus, o ano dos carajás, o ano dos genovevas, o ano dos cachorros quentes explodindo, o ano dos desacontecimentos, o ano dos cabelos brancos, o ano do último vôo livre de minha mãe. 1996, o ano da expectativa, o ano dos adiamentos, o ano da esperança, o ano que ainda não começou e acaba hoje. 1996, o ano que vai começar em 97, feliz ano novo...

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