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Ontem eu morri
De Milly Lacombe

Três coisas me deixam em pânico: a idéia de que eu um dia vou morrer, a idéia de que aqueles que eu amo um dia vão morrer e, acima de uma e da outra, a possibilidade real de topar com uma barata em algum canto da casa. Quanto à barata, não há o que fazer a não ser selecionar as companhias de vida eliminando do convívio aquelas incapazes de matá-las. Não existe, para mim, amor que resista à falta de disposição para tascar o chinelo no diabólico inseto (e, na sequência, me mostrar o cadáver – exigência que surgiu depois de ter sido enganada várias vezes). Mas, para tentar driblar esse paranóico medo de morrer não pude contar com a ajuda de terceiros. Fui então obrigada a desenvolver uma técnica que depois de um tempo se mostrou invejável: me convenci de que jamais morrerei. É muito simples, na verdade. Basta acreditar que a morte não existe e que, mesmo que alguns de seus entes queridos aparentemente já tenham sido supreendidos por ela, isso jamais acontecerá com você. Você dá à morte uma conotação parecida com aquela de ganhar na loteria: até sabe que alguns conseguiram, mas sabe também que isso jamais acontecerá com você. Funcionou perfeitamente. Até a semana passada.

Pobres daqueles que acham que a morte é um acontecimento único e derradeiro. Morremos um pouco a cada dia, a cada rompimento, a cada perda. Ontem, morri várias vezes. Morri quando abri a porta do armário e, lentamente, tirei dele minhas calças, camisetas, sapatos, casacos ... morri um pouco mais quando peguei meus livros e cds. Mais ainda quando fechei a mala e arrastei-a para perto da porta. Já cadáver de mim mesma, consegui morrer um pouco mais quando coloquei a mala no elevador e, sozinha, apartei o botão da garagem, que me levou ao subsolo da minha dor. Morri, e, morta, escrevo este texto. Morta, olho em volta e vejo vida. Vejo o sol, pessoas indo ao cinema, ao supermercado, ao shopping – ignorando minha condição.

Mas, ainda morta e respirando, percebo que nascemos um pouco quando o telefone toca e a voz do outro lado da linha, há pouco cheia de dor, transcende o próprio sofrimento e faz você rir e lembrar de uma época em que eram vivas e felizes. Faz você lembrar - em perfeitas cores, tons, cheiros - porque por ela se apaixonou perdidamente numa tarde de verão californiano. E nascemos um pouco mais quando nos damos conta de que estamos rindo de coisas que deveriam ser apenas tristes. Mas, mortas-vivas que agora somos, já não sabemos mais sobre essas patéticas regras mundanas e, assim, nos permitimos rir – e gargalhar – de nossa própria miséria. Juntas, como nos velhos tempos. Juntas, como um dia foi, e como para sempre será.

E nascemos mais ainda quando começamos a resgatar nosso passado, tão recente, cheio de cenas divertidas. Um pouco mais quando percebemos que tudo valeu a pena, que fomos felizes e que faríamos tudo outra vez, exatamente igual: mesmas lágrimas, mesmos encontros e desencontros, mesmos erros e acertos. E nascemos mais ainda quando nos damos conta de que não é preciso ter medo da morte, porque é ela, afinal, o grande segredo da vida.

E então entendo que o grande problema não é temer à morte, mas sim à vida. Medo de morrer é quase nada se comparado ao medo de viver, esse sim o grande vilão. E é assim, aos poucos, que vamos renascendo até que um dia, quando menos se espera, abrimos a janela para perceber que tem sol lá fora. E que a vida, finalmente, nos pegou pela mão outra vez. É esse o ciclo. E, a cada ciclo, uma outra jornada, agora cheia de novas referências, memórias, dores e prazeres. É assim que nascemos e morremos. Várias vezes.

Isso tudo para os que têm sorte, é claro. Porque os menos afortunados passam por aqui para morrer apenas uma vez. Pobres almas.

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