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Mostrando postagens de janeiro, 2008
As mortes do Farley L. F. Veríssimo Até a sua morte ridícula, a única coisa notável no Farley era o nome. Vinha de Farley Granger, um ator americano que sua mãe amava. Fora isso, Farley era uma pessoa comum, à qual nunca tinha acontecido nada. Até que aconteceu: Farley foi atropelado pela bicicleta de um entregador de lavanderia. Caiu, bateu com a cabeça no meio-fio e morreu. O entregador nem estava montado na bicicleta. Deixara a bicicleta estacionada contra um muro, num declive, a bicicleta saíra andando sozinha, Farley vinha dobrando a esquina com um pacote do super (duas cervejas, bolachas, uma revista para a mulher), tropeçara na bicicleta e pumba. No velório, diante da consternação geral de parentes e amigos - o Farley, tão moço, tão pacato! -, a primeira explicação foi que as circunstâncias da sua morte ainda não estavam bem claras. Tudo indicava que tinha sido um entregador de pizza. Numa moto. Mas ainda não estava bem claro. Podia ter sido um Volkswagen. A viúva nem precisou p...
Um dos meus preferidos da vida inteira. E o primeiro Vinícius de Moraes que eu me lembro ter lido - início de uma paixão irremediável por ele. . Para uma menina com uma flor Vinícius de Moraes Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado. E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras. E porque você sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano, e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo d...
Poema ao mais recente amor Leila Míccolis Estar entre teus pelos e dedos, entre tua densidade, neste transpirar sob medida aos teus gemidos. Estar entre teus trópicos, entre o teu desejo e o meu prazer; beber o teu desejo e o meu prazer; beber parte de teus líquens e teus rios percorrendo-te da foz até a origem, e pura a cada amor partir mais virgem.
'..A coisa era limpa: como se tratava de uma pessoa, então o limpo resultado fora cumprir a experiência de não poder. Pareceu-lhe mesmo que poucas pessoas haviam tido a honra de não poder. Pois, numa sensação genial, nascida talvez da sua dor, ele soube que o resultado mais acertado era falhar. . . Mas falhara? Porque a compensação também era fatal. Pois, num equilíbrio perfeito, acontecia que se ele não tinha as palavras, tinha o silêncio. E se não tinha a ação, tinha o grande amor. Um homem podia não saber nada; mas sabia como se virar, por exemplo, para o lado do poente: um homem tinha o grande recurso da atitude. se não tivesse o medo de ser mudo.' Clarice Lispector
A aventura de um empregado de escritório Ítalo Calvino A Enrico Gnei, empregado de escritório, aconteceu passar a noite com uma bela senhora. Saindo da casa dela, cedo, o ar e as cores da manhã primaveril se abriram diante dele, frescos, tonificantes e novos, e ele tinha a impressão de estar caminhando ao som de música. (...) Já que, homem metódico que era, ter se levantado em casa alheia, ter se vestido às pressas, sem se barbear, deixavam-lhe uma impressão de descarrilhamento de hábitos, pensou por um instante em dar um pulo em casa, antes de ir para o escritório, para fazer a barba e se arrumar. Daria tempo, mas Gnei logo repeliu a idéia, preferiu se convencer de que era tarde, porque o assaltou o temor de que a casa, a repetição dos gestos cotidianos dissolvessem a atmosfera extraordinária e rica em que se movia no momento. (...) No banco havia um jornal aberto, Gnei o percorreu. Não tinha comprado o jornal, aquela manhã, e dizer que ao sair de casa aquela era sempre a primeira coi...
Mais Alcoólicas, da Hilda Hilst. Enviada pela Marina, que é sempre o máximo na tarefa informal de alimentar esse blog de coisas legais. . Se um dia te afastares de mim, Vida — o que não creio Porque algumas intensidades têm a parecença da bebida — Bebe por mim paixão e turbulência, caminha Onde houver uvas e papoulas negras (inventa-as) Recorda-me, Vida: passeia meu casaco, deita-te Com aquele que sem mim há de sentir um prolongado vazio. Empresta-lhe meu coturno e meu casaco rosso: compreenderá O porquê de buscar conhecimento na embriaguês da via manifesta. Pervaga. Deita-te comigo. Apreende a experiência lésbica: O êxtase de te deitares contigo. Beba. Estilhaça a tua própria medida. (Alcoólicas - IX)
Alcoólicas Hilda Hilst É crua a vida. Alça de tripa e metal. Nela despenco: pedra mórula ferida. É crua e dura a vida. Como um naco de víbora. Como-a no livor da língua Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me No estreito-pouco Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida Tua unha plúmbea, meu casaco rosso. E perambulamos de coturno pela rua Rubras, góticas, altas de corpo e copos. A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos. E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima Olho d'água, bebida. A Vida é líquida. (Alcoólicas - I) * * * Também são cruas e duras as palavras e as caras Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas Vai se fazendo tempo de conquista. Langor ...
( do Milen, no Essência Intermitente ) Heath Ledger aparece morto e os jornais só me falam do corte de juros do Banco Central americano. Esses jornalecos decidiram que o mundo é feio, bobo e chato; e o mundo caiu na conversa deles. Aliás, Heath: quero crer que isso aí tenha sido um mítico desprendimento suicida. Quero crer que você mijou em cinco altares, que descartou Sucesso, Beleza, Dinheiro, Realização Profissional e Sonho Americano com a autoridade de quem foi beijado e lambido por todos esses deuses… Quero vislumbrar um gigantesco tapa de luva na cara do Ocidente, em vez de um banal erro de cálculo numa noite de terça.
Harmonia velha Guilherme de Almeida O teu beijo resume Todas as sensações dos meus sentidos A cor, o gosto, o tato, a música, o perfume Dos teus lábios acesos e estendidos Fazem a escala ardente com que acordas o fauno encantador Que, na lira sensual de cinco cordas, Tange a canção do amor! E o tato mais vibrante, O sabor mais sutil, a cor mais louca, O perfume mais doido, o som mais provocante Moram na flor triunfal da tua boca! Flor que se olha, e ouve, e toca, e prova, e aspira; Flor de alma, que é também Um acorde em minha lira, Que é meu mal e é meu bem... Se uma emoção estranha o gosto de uma fruta, a luz de um poente - chega a mim, não sei de onde, e bruscamente ganha qualquer sentido meu, é a ti somente que ouço, ou aspiro, ou provo, ou toco, ou vejo... E acabo de pensar Que qualquer emoção vem de teu beijo Que anda disperso no ar...
Florbela Espanca Eu quero amar, amar perdidamente! Amar só por amar: Aqui...além... Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente Amar! Amar! E não amar ninguém! Recordar? Esquecer? Indiferente!... Prender ou desprender? É mal? É bem? Quem disser que se pode amar alguém Durante a vida inteira é porque mente! Há uma Primavera em cada vida: É preciso cantá-la assim florida, Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar! E se um dia hei-de ser pó,cinza e nada Que seja a minha noite uma alvorada, Que me saiba perder... pra me encontrar...
Fernando Pessoa Contemplo o lago mudo Que uma brisa estremece. Não sei se penso em tudo Ou se tudo me esquece. O lago nada me diz, Não sinto a brisa mexê-lo Não sei se sou feliz Nem se desejo sê-lo. Trêmulos vincos risonhos Na água adormecida. Por que fiz eu dos sonhos A minha única vida?
Cláudia Narcótico Elisa Lucinda Quando eu dormisse bem que podia vir um homem treinado a dizer que me ama. Quando eu dormisse Bem que podia nascer na minha cama Um antúrio com falo e bigode Um entulho desses que pode Morder a gente com postura de amante E constância de marido Assíduo, quando eu dormisse Acordar com alguém que me dissesse Que eu sou gostosa Despertar como quem goza No travesseiro e troca a fronha Desfilar como quem posa Na poça da bela que sonha. Quando eu dormisse O baby-doll enfiado na meninice Inventar uns nomes Chamar os homens à cachorrice Ai, se eu dormisse Diempax idiotice Um pijama listrado A cafonice Um vampiro tarado paranormalisse Terno engomado prancha surfisse Qualquer função que eu não visse Papai-mamãe Mesma mesmice Quando eu dormisse Manhã de sol e ele sumisse.
Clarice Lispector Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado de pensar.
Motivo Cecília Meireles Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias ao vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, - não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: - mais nada.
A mesa Carlos Drummond de Andrade E não gostavas de festa... Ó velho, que festa grande hoje te faria a gente. E teus filhos que não bebem e o que gosta de beber, em torno da mesa larga, largavam as tristes dietas, esqueciam seus fricotes, e tudo era farra honesta acabando em confidência. Ai, velho, ouvirias coisas de arrepiar teus noventa. E daí, não te assustávamos, porque, com riso na boca, e a nédia galinha, o vinho português de boa pinta, e mais o que alguém faria de mil coisas naturais e fartamente poria em mil terrinas da China já logo te insinuávamos que era tudo brincadeira. Pois sim. Teu olho cansado, mas afeito a ler no campo uma lonjura de léguas, e na lonjura uma rês perdida no azul azul, entrava-nos alma adentro e via essa lama podre e com pesar nos fitava e com ira amaldiçoava e com doçura perdoava (perdoar é rito de pais quando não seja de amantes). E, pois, todo nos perdoando, por dentro te regalavas de ter filhos assim... Puxa, grandecíssemos safados, me saíram bem mel...
Nossa expulsão do paraíso Barroso da Costa ( http://www.blogger.com/www.osimpublicaveis.com.br ) Embora não seja especialista na matéria, uma das coisas mais interessantes sobre as quais a Psicanálise me fez pensar diz respeito à nossa expulsão do Paraíso. Isto mesmo. Sobre aquele lance de comer a maçã proibida e, a partir de então, ter vergonha de nossos corpos nus, ter de trabalhar para comer, sentir tesão pela marquinha de biquíni da Eva etc. Ao sermos despejados do Éden, nos tornamos homens. O mundo evoluiu, o machismo já não impera e hoje podemos ser homens e mulheres, com direitos iguais. Já se pode inclusive ser gay, lésbica, simpatizante, transexual, pansexual, metrossexual, a um metro de ser homossexual e – para o horror de muitos – ainda nos é permitido optar pela heterossexualidade. Este excesso de nomes para o que no Paraíso seria denominado simplesmente de macho ou fêmea vem bem a calhar quando se trata de tentar explicar nossa expulsão daquele recanto de paz, sossego e tr...
Quem me mandou foi o Nando .
Soneto Camões Quem diz que Amor é falso ou enganoso, Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido, Sem falta lhe terá bem merecido Que lhe seja cruel ou rigoroso. Amor é brando, é doce e é piedoso. Quem o contrário diz não seja crido; Seja por cego e apaixonado tido, E aos homens, e inda aos deuses, odioso. Se males faz Amor, em mi se vêem; Em mi mostrando todo o seu rigor, Ao mundo quis mostrar quanto podia. Mas todas suas iras são de Amor; Todos estes seus males são um bem, Que eu por todo outro bem não trocaria.
Ri muito desta parte ontem à noite: . "(...) Mas eu tinha até ali agarrado uma esperança. Tinha ouvido dizer que, quando canoa vira, fica boiando, e é bastante a gente se apoiar nela, encostar um dedo que seja, para se ter tenência, a constância de não afundar, e aí ir seguindo, até sobre se sair no seco. Eu disse isso. E o canoeiro me contradisse: - 'Esta é das que afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa de peroba e de pau-d'óleo não sobrenadam...' Me deu uma tontura. O ódio que eu quis: ah, tantas canoas no porto, boas canoas boiantes, de faveira ou tamboril, de imburana, vinhático ou cedro, e a gente tinha escolhido aquela... Até fosse crime, fabricar dessas, de madeira burra! (...)". . João Guimarães Rosa, "Grande sertão: veredas"
Contribuição da Marina, que me deixa orgulhosa de ter leitor(es) ótimo(s). O dia da ira Adélia Prado As coisas tristíssimas, o rolomag, o teste de Cooper, a mole carne tremente entre as coxas, vão desaparecer quando soar a trombeta. Levantaremos como deuses, com a beleza das coisas que nunca pecaram, como árvores, como pedras, exatos e dignos de amor. Quando o anjo passar, o furacão ardente do seu vôo vai secar as feridas, as secreções desviadas dos seus vasos e as lágrimas. As cidades restarão silenciosas, sem um veículo: apenas os pés de seus habitantes reunidos na praça, à espera de seus nomes.
Marfim Ana C. César A moça desceu os degraus com o robe monogramado no peito: L.M. sobre o coração. Vamos iniciar outra Correspondência, ela propõe. Você já amou alguém verdadeiramente? Os limites do romance realista. Os caminhos do desconhecer. A imitação da rosa. As aparências desenganam. Estou desenganada. Não reconheço você, que é tão quieta, nessa história. Liga amanhã outra vez sem falta. Não posso interromper o trabalho agora. Gente falando por todos os lados. Palavra que não mexe mais no barril de pólvora plantado sobre a torre de marfim.
Os desaparecidos Affonso Romano de Sant’Anna De repente, naqueles dias, começaram a desaparecer pessoas, estranhamente. Desaparecia-se. Desaparecia-se muito naqueles dias. Ia-se colher a flor oferta e se esvanecia. Eclipsava-se entre um endereço e outro ou no táxi que se ia. Culpado ou não, sumia-se ao regressar do escritório ou da orgia. Entre um trago de conhaque e um aceno de mão, o bebedor sumia. Evaporava o pai ao encontro da filha que não via. Mães segurando filhos e compras, gestantes com tricots ou grupos de estudantes desapareciam. Desapareciam amantes em pleno beijo e médicos em meio à cirurgia. Mecânicos se diluíam - mal ligavam o tôrno do dia. Desaparecia-se. Desaparecia-se muito naqueles dias. Desaparecia-se a olhos vistos e não era miopia. Desaparecia-se até a primeira vista. Bastava que alguém visse um desaparecido e o desaparecido desaparecia. Desaparecia o mais conspícuo e o mais obscuro sumia. Até deputados e presidentes esvaneciam. Sacerdotes, igualmente, levitando i...
A invenção de um modo Adélia Prado Entre paciência e fama quero as duas, pra envelhecer vergada de motivos. Imito o andar das velhas de cadeiras duras e se me surpreendem, explico cheia de verdade: tô ensaiando. Ninguém acredita e eu ganho uma hora de juventude. Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa, a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo" Fico entre montanhas, entre guarda e vã, entre branco e branco, lentes pra proteger de reverberações. Explicação é para o corpo do morto, de sua alma eu sei. Estátua na Igreja e Praça quero extremada as duas. Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando, vendo televisão, ou tirando sorte com quem vou casar. Porque que tudo que invento já foi dito nos dois livros que eu li: as escrituras de Deus, as escrituras de João. Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.
A morte Vinícius de Moraes A morte vem de longe Do fundo dos céus Vem para os meus olhos Virá para os teus Desce das estrelas Das brancas estrelas As loucas estrelas Trânsfugas de Deus Chega impressentida Nunca inesperada Ela que é na vida A grande esperada! A desesperada Do amor fratricida Dos homens, ai! dos homens Que matam a morte Por medo da vida.