Açúcar emprestado
Luis Fernando Veríssimo
Vizinhos de porta, ele o 41 e ela o 42.
Primeiro lance: ela. Bateu na porta dele e pediu açúcar emprestado para fazer um pudim.
Segundo lance: ela de novo. Bateu na porta dele e perguntou se ele não queria provar o pudim. Afinal, era co-autor.
Terceiro lance: ele. Hesitou, depois perguntou se ela não queria entrar. Ela entrou, equilibrando o prato do pudim longe do peito para não derramar a calda.
- Não repara a bagunça...
- O meu é pior.
- Você mora sozinha?
Sabia que ela morava sozinha. Perguntara ao porteiro logo depois de se mudar. A do 42? Dona Celinha? Mora sozinha. Morava com a mãe mas a mãe morreu. Boa moça. Um pouco... E o porteiro fizera um gesto indefinido com a mão, sem dizer o que a moça era. Fosse o que fosse, era só um pouco.
A conversa começou com apresentações e troca de informações - "Nélio", "Celinha", "Capricórnio", "Leão", "Daqui mesmo", "Eu também" - e continuou enquanto comiam todo o pudim, que estava ótimo. Mas quando ela disse "Como a gente se entendeu bem, né?", cobrindo a mão dele com a dela, ele decidiu dar um lance preventivo e declarou que não queria envolvimentos em sua vida. Queria ser um homem sem envolvimentos. Entende? Sua decisão de vida era não ter envolvimentos.
- Como, envolvimentos? - perguntou ela.
- Envolvimentos - explicou ele.
Antes de sair, com a cara amarrada, ela disse:
- Me empresta uma gilete?
- Gilete? Eu não uso gilete.
- Não faz mal, eu tenho em casa.
E saiu, pisando firme e sem olhar para trás.
Uma hora depois, bateu na porta.
- Esqueci o prato do pudim.
Ele viu que ela tinha cortado os pulsos. O sangue pingava nas lajes do corredor.
- O que é isso?!
E todo o tempo, enquanto ele estancava a sangueira da melhor maneira possível, e a colocava no seu carro, e a levava em disparada para o hospital, ela só repetia:
- Ué, não era você que não queria envolvimentos? Não era você?
Luis Fernando Veríssimo
Vizinhos de porta, ele o 41 e ela o 42.
Primeiro lance: ela. Bateu na porta dele e pediu açúcar emprestado para fazer um pudim.
Segundo lance: ela de novo. Bateu na porta dele e perguntou se ele não queria provar o pudim. Afinal, era co-autor.
Terceiro lance: ele. Hesitou, depois perguntou se ela não queria entrar. Ela entrou, equilibrando o prato do pudim longe do peito para não derramar a calda.
- Não repara a bagunça...
- O meu é pior.
- Você mora sozinha?
Sabia que ela morava sozinha. Perguntara ao porteiro logo depois de se mudar. A do 42? Dona Celinha? Mora sozinha. Morava com a mãe mas a mãe morreu. Boa moça. Um pouco... E o porteiro fizera um gesto indefinido com a mão, sem dizer o que a moça era. Fosse o que fosse, era só um pouco.
A conversa começou com apresentações e troca de informações - "Nélio", "Celinha", "Capricórnio", "Leão", "Daqui mesmo", "Eu também" - e continuou enquanto comiam todo o pudim, que estava ótimo. Mas quando ela disse "Como a gente se entendeu bem, né?", cobrindo a mão dele com a dela, ele decidiu dar um lance preventivo e declarou que não queria envolvimentos em sua vida. Queria ser um homem sem envolvimentos. Entende? Sua decisão de vida era não ter envolvimentos.
- Como, envolvimentos? - perguntou ela.
- Envolvimentos - explicou ele.
Antes de sair, com a cara amarrada, ela disse:
- Me empresta uma gilete?
- Gilete? Eu não uso gilete.
- Não faz mal, eu tenho em casa.
E saiu, pisando firme e sem olhar para trás.
Uma hora depois, bateu na porta.
- Esqueci o prato do pudim.
Ele viu que ela tinha cortado os pulsos. O sangue pingava nas lajes do corredor.
- O que é isso?!
E todo o tempo, enquanto ele estancava a sangueira da melhor maneira possível, e a colocava no seu carro, e a levava em disparada para o hospital, ela só repetia:
- Ué, não era você que não queria envolvimentos? Não era você?
Comentários