As mortes do Farley
L. F. Veríssimo
L. F. Veríssimo
Até a sua morte ridícula, a única coisa notável no Farley era o nome. Vinha de Farley Granger, um ator americano que sua mãe amava. Fora isso, Farley era uma pessoa comum, à qual nunca tinha acontecido nada. Até que aconteceu: Farley foi atropelado pela bicicleta de um entregador de lavanderia. Caiu, bateu com a cabeça no meio-fio e morreu. O entregador nem estava montado na bicicleta. Deixara a bicicleta estacionada contra um muro, num declive, a bicicleta saíra andando sozinha, Farley vinha dobrando a esquina com um pacote do super (duas cervejas, bolachas, uma revista para a mulher), tropeçara na bicicleta e pumba.
No velório, diante da consternação geral de parentes e amigos - o Farley, tão moço, tão pacato! -, a primeira explicação foi que as circunstâncias da sua morte ainda não estavam bem claras. Tudo indicava que tinha sido um entregador de pizza. Numa moto. Mas ainda não estava bem claro. Podia ter sido um Volkswagen.
A viúva nem precisou pedir. Todos na família se conscientizaram, sem combinar nada, de que era preciso proteger o pobre do Farley dos detalhes da sua morte. Já que vivo não fora nada, que pelo menos morto não fosse ridículo. E a família também precisava se proteger do constrangimento de dizer a verdade, cada vez que perguntassem como o Farley morrera. Um atropelamento por bicicleta desgarrada, por mais doloroso que fosse, seria sempre um desafio à seriedade. A família precisava urgentemente de uma morte mais séria.
Antes de o enterro sair, já corria a versão que Farley tinha sido atropelado por uma Mercedes. E mais: o atropelamento podia não ter sido acidental.
- Mas como? Quem ia querer mata o Farley?
- Nunca se sabe, nunca se sabe.
Naquela noite, tinha-se outra versão da tragédia. Não fora uma Mercedes, fora uma jamanta. E Farley morrera salvando uma criança. Correra para tirar a criança do caminho da jamanta, fora atingido e caíra com a cabeça contra o meio-fio. A jamanta não parara. A criança fugira, assustada. Estavam tentando descobrir sua identidade.
Passou o tempo, como costuma acontecer. E a legenda do Farley cresceu, com versões cada vez mais nobres elaboradas para sua morte sendo empilhadas em cima da singela verdade, para que esta nunca aparecesse. Mas desenvolveu-se, entre os jovens da família, uma espécie de contracorrente. Por inconfidências dos mais velhos, sabiam que a morte do tio Farley tinha sido ridícula. Só não sabiam como. E como os mais velhos não forneciam os pormenores - "Não se fala nisso nesta família, não pergunte" - cresceu entre eles outra legenda: a das possíveis mortes insólitas do tio Farley. Escorregara num cocô de cachorro - não, numa clássica casca de banana! - e quebrara a cabeça. Abrira a boca para bocejar, entrara um besouro em sua boca e ele morrera engasgado. Morrera do que ninguém morre: tratamento de canal, limpeza de pele, até (as especulações chegavam ao delírio) atropelamento por bicicleta. Sabe aquele satélite americano que perdeu velocidade e caiu, se despedaçando ao entrar na atmosfera? Os jornais não deram, mas um pedaço caiu no Brasil, adivinha em cima de quem. No outro dia, um dos jovens da família perguntou para a mãe se não era verdade que o tio Farley tinha ficado com a gravata presa numa porta giratória e... Mas a mãe fez "sssh" porque as pessoas em volta podiam ouvir. E porque a banda ia começar a tocar. Estavam inaugurando o monumento ao Farley, na praça que tinha o seu nome, com uma inscrição no pedestal: "A pátria agradecida”. Finalmente, o reconhecimento pela sua ação decisiva em defesa da democracia, quando acabara, por acidente, embaixo de um tanque de guerra, ainda segurando uma bandeira nacional, em circunstâncias que nunca tinham ficado bem claras.
Comentários
Espero que não se importe, mas eu coloquei um link no meu blog que vem pra esse texto.
Tá?
Obrigada!
coitado do Farley...