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Entre vista 1 e 2 (ou aquilo que ainda não me perguntaram) (fragmentos) Elisa Lucinda - que o homem que habita o meu desejo e o lado mais nobre de minha cama-alma é o mesmo do meu sonho; - que estou muito acostumada comigo. E quase não brigamos; - que gosto de luta mas não gosto de briga; - que todos os beijos na boca são únicos; - que se eu passar mais de 24 horas num lugarejo com amor, viro nativa, avó, parteira e vizinha; - que ajo como se fosse viver eternamente e morrer amanhã; - que sou chegada num trovão e a porção de delicadezas que pode causar sobre um poema. - que o medo é um defeito físico. Paralisa.
Era uma menina que gostava de inventar uma explicação para cada coisa - explicação é uma frase que se acha mais importante do que a palavra. Ela achava o mundo do lado de fora um pouquinho complicado. Se cada um simplificasse as coisas, o mundo podia ser mais fácil, ela pensava. Então tentava simplificar o mundo dentro da sua cabeça - simplificar é quando em vez de pensar em 4/8 a pessoa pensa logo em 1/2. Um meio, quando é escrito em números, sempre quer dizer "metade". Mas quando é escrito em letras, pode também querer dizer "um jeito". Existem vários jeitos de entender o mundo. Ela tentava explicar de um jeito que ele ficasse mais bonito. Essa menina pensa que é filósofa, as pessoas falavam - filósofo é quem, em vez de ver televisão, prefere ficar pensando pensamentos. De tanto que a menina explicava, as pessoas às vezes se irritavam ( irritação é um alarme de carro que dispara bem no meio de seu peito) e terminavam indo embora, deixando a menina lá, explican...
O olimpo da mulheres prendadas Jô Hallack ( www.02neuronio.com.br ) Tudo começou com um bolo de cenoura. Ficou ótimo, porém, com jeito de solado. Suas amigas e sua mãe lhe garantiram que bolo de cenoura sempre fica com jeito de solado. E você resolveu ir além. Com um objetivo definido: chegar ao olimpo das pessoas prendadas. Seres humanos elevados que sabem fazer até o trivial. E por que isso? Porque você surtou e quer ser do lar. Acontece nas melhores famílias. Você, oprimida por ter que fazer jornada dupla de trabalho - isto é, trabalhar na sua firma e trabalhar na sua casa... oprimida por ter que ser inteligente, criativa, empreendedora e conquistar o mundo (oprimida por você mesma, bom dizer) - resolve escapar pelos fundos. E aprender a cozinhar. E não vale aquelas picaretagens refinadas não! Sim, você sabe até fazer atum com coscouz marroquino. Mas a mulherzinha que grita dentro de você diz que você tem que ser uma cozinheira ordinária. No melhor dos sentidos. E fazer feijão...
(...) Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. A té cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. (...) Clarice Lispector
Samba-canção Ana Cristina Cesar Tantos poemas que perdi. Tantos que ouvi, de graça, pelo telefone – taí, eu fiz tudo pra você gostar, fui mulher vulgar, meia-bruxa, meia-fera, risinho modernista arranhando na garganta, malandra, bicha, bem viada, vândala, talvez maquiavélica, e um dia emburrei-me, vali-me de mesuras era comércio, avara, embora um pouco burra, porque inteligente me punha logo rubra, ou ao contrário, cara pálida que desconhece o próprio cor-de-rosa, e tantas fiz, talvez querendo a glória, a outra cena à luz de spots, talvez apenas teu carinho, mas tantas, tantas fiz...
Teu corpo seja brasa Alice Ruiz teu corpo seja brasa e o meu a casa que se consome no fogo um incêndio basta pra consumar esse jogo uma fogueira chega pra eu brincar de novo
Verdade Carlos Drummond de Andrade A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
"Deve-se apresentar ao sujeito o seu próprio dito, o mesmo que dizer 'coma o que disse', pois não se come apenas livros como no Apocalipse de São João; também se come as próprias palavras em análise, ainda que não sejam um prato saboroso". Miller, "Diagnóstico e localização subjetiva". In: Lacan Elucidado.
Aceitação Cecília Meirelles É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens E sentir passar as estrelas Do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos. É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano E assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas, Que desejar que apareças, criando com teu simples gesto O sinal de uma eterna esperança. Não me interessam nem mais as estrelas, nem as formas do mar, nem tu. Desenrolei de dentro do tempo a minha canção: Não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.
Pronominais Oswald de Andrade Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro
"A posição ética tradicional, metafísica, política, que permitia às pessoas orientar seu pensamento, está em falta. O excesso se tornou a norma". Charles Melman, psicanalista. Revista Isto É, 22/09/04.
Emergência Mário Quintana Quem faz um poema abre uma janela. Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela. Por isso é que os poemas têm ritmo - para que possas profundamente respirar. Quem faz um poema salva um afogado.
Os teus pés Pablo Neruda Quando não posso contemplar teu rosto, contemplo os teus pés.Teus pés de osso arqueado, teus pequenos pés duros. Eu sei que te sustentam e que teu doce peso sobre eles se ergue. Tua cintura e teus seios, a duplicada púrpura dos teus mamilos, a caixa dos teus olhos que há pouco levantaram vôo, a larga boca de fruta, tua rubra cabeleira, pequena torre minha. Mas se amo os teus pés é só porque andaram sobre a terra e sobre o vento e sobre a água, até me encontrarem.
Aos apaixonados Rubem Alves Dedico esta crônica aos apaixonados, mesmo sabendo que servirá para nada: é inútil falar aos apaixonados. Os apaixonados só ouvem poemas e canções. A paixão, experiência insuperável de prazer e alegria, pelo fato mesmo de ser uma experiência insuperável de prazer e alegria, coloca o apaixonado fora dos limites da razão. Todo apaixonado é tolo. Pode ser que ele escute a fala da razão. Escuta mas não acredita. Diz ele: "o meu caso é diferente!" Tolo mesmo é quem tenta argumentar com os apaixonados. Começa, pois, assim, minha inútil meditação com um verso terrível de T. S. Eliot. Ele está rezando. Ele sabe que somente Deus tem poder para lidar com a loucura da paixão. Ele reza assim: livra-me da dor da paixão não satisfeita e da dor muito maior da paixão satisfeita. Todo mundo sabe que paixão não satisfeita dói. Mas poucos sabem que a paixão só existe se não for satisfeita. A paixão é fome. Ela só floresce na ausência do objeto amado. Mais precisament...
Toco sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você. Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas se encontram e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um per...
Teu nome Vinícius de Moraes Teu nome, Maria Lúcia Tem qualquer coisa que afaga Como uma lua macia Brilhando à flor de uma vaga. Parece um mar que marulha De manso sobre uma praia Tem o palor que irradia A estrela quando desmaia. É um doce nome de filha É um belo nome de amada Lembra um pedaço de ilha Surgindo de madrugada. Tem um cheirinho de murta E é suave como a pelúcia É acorde que nunca finda É coisa por demais linda Teu nome, Maria Lúcia...