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Pérolas de criança - Dalton Trevisan — Tua professora ligou. De castigo, você. Beijando na boca os meninos. Que feio, meu filho. Não é assim que se faz. — ... — Menino beija menina. — Você é gozada, cara. — ... — Pensa que elas deixam? *** Ele sai do banheiro, a toalha na cintura. — Pai, deixa eu ver o teu rabo. É a tipinha deslumbrada no baile da debutante de três anos. — Rabo, filha? Ah, sei. O bumbum do pai? — Seu bobo. — ... — Esse pendurado aí na frente. *** O pai telefona para casa: — Alô? — ... Reconhece o silêncio da tipinha. Você liga? Quem fala é você. — Alô, fofinha. Nem um som. Criança não é para ser chamada fofinha. Cinco anos, já viu. — Oi, filha. Sabe que eu te amo? — Eu também. "Puxa, ela nunca disse que me amava". — Também o quê? — Eu também amo eu.
Cultura Arnaldo Antunes O girino é o peixinho do sapo. O silêncio é o começo do papo. O bigode é a antena do gato. O cavalo é o pasto do carrapato. O cabrito é o cordeiro da cabra. O pescoço é a barriga da cobra. O leitão é um porquinho mais novo. A galinha é um pouquinho do ovo. O desejo é o começo do corpo. Engordar é tarefa do porco. A cegonha é a girafa do ganso. O cachorro é um lobo mais manso. O escuro é a metade da zebra. As raízes são as veias da seiva. O camelo é um cavalo sem sede. Tartaruga por dentro é parede. O potrinho é o bezerro da égua. A batalha é o começo da trégua. Papagaio é um dragão miniatura. Bactéria num meio é cultura.
Porque a Jô me escreveu um e-mail. E porque esse poema merecia ser dela, mesmo se ela não tivesse escrito: Soneto do amigo Vinícius de Moraes Enfim, depois de tanto erro passado Tantas retaliações, tanto perigo Eis que ressurge noutro o velho amigo Nunca perdido, sempre reencontrado. É bom sentá-lo novamente ao lado Com os olhos que contêm o olhar antigo Sempre comigo um pouco atribulado E como sempre singular comigo. Um bicho igual à mim, simples e humano Sabendo se mover e comover E a disfarçar com meu próprio engano. O amigo: um ser que a vida não explica Que só se vai ao ver outro nascer E o espelho de minha alma multiplica...
Choro à capela Adélia Prado O poder que eu quisera é dominar meu medo. Por este grande Dom troco meu verso, meu dedo, meus anéis e colar. Só meu colo não ponho no machado, porque a vida não é minha. com um braço só, uma só perna, ou sem os dois de cada um, vivo e canto. Mas com todos e medo, choro tanto que temo dar escândalo a meus irmãos. Mas venho e vou, "os lobos tristes" a seu modo louvam. Nasci vacum, berro meu era só por montar, parir, a boa fome, os júbilos ferozes. As vacas velhas têm os olhos tristes? Tristeza é o nome do castigo de Deus e virar santo é reter a alegria. Isto eu quero.
Paulo Leminski Ai daqueles que se amaram sem nenhuma briga aqueles que deixaram que a mágoa nova virasse a chaga antiga ai daqueles que se amaram sem saber que amar é pão feito em casa e que a pedra só não voa porque não quer não porque não tem asa.
Charles Baudelaire É necessário estar sempre bêbedo. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas - de que? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.
Lya Luft Se te pareço ausente, não creias: hora a hora minha dor agarra-se aos teus braços, hora a hora meu desejo revolve teus escombros, e escorrem dos meus olhos mais promessas. Não acredites nesse breve sono; não dês valor maior ao meu silêncio; e se leres recados numa folha branca, Não creias também: é preciso encostar teus lábios nos meus lábios para ouvir. Nem acredites se pensas que te falo: palavras são meu jeito mais secreto de calar.
Casamento Adélia Prado Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como "este foi difícil" "prateou no ar dando rabanadas" e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.
A espantosa realidade das cousas É a minha descoberta de todos os dias. Cada cousa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta. Basta existir para se ser completo. Tenho escrito bastantes poemas. Hei de escrever muitos mais. Naturalmente. Cada poema meu diz isto, E todos os meus poemas são diferentes, Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto. Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra. Não me ponho a pensar se ela sente. Não me perco a chamar-lhe minha irmã. Mas gosto dela por ela ser uma pedra, Gosto dela porque ela não sente nada. Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo. Outras vezes oiço passar o vento, E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido. Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto; Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo, Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar; Porque o penso sem pensamentos Porque o digo como as min...
Clarice Lispector Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que sangue escarlate não estava em silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de morte, estava pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz-de-conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz-de-conta verde cintilante de olhos que vêem, faz de conta que ela amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer...
A hora do cansaço Carlos Drummond de Andrade As coisas que amamos, as pessoas que amamos são eternas até certo ponto. Duram o infinito variável no limite do nosso poder de respirar a eternidade. Pensá-las é pensar que não acabam nunca, dar-lhes moldura de granito. De outra matéria se tornam, absoluta, numa outra (maior) realidade. Começam a esmaecer quando nos cansamos, e todos nos cansamos, por um outro itinerário, de aspirar a resina do eterno. Já não pretendemos que sejam imperecíveis. Restituímos cada ser e coisa à condição precária, rebaixamos o amor [ao estado de utilidade. Do sonho de eterno fica esse gosto acre na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.
Primeira (e última) sessão de drenagem linfática da minha vida. Conclusão: decidi que vou morrer com todas as celulites que Deus quiser me dar. A beleza é muito dolorida. Receita de mulher Vinícius de Moraes As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental. É preciso que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture em tudo isso (ou então que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa). Não há meio-termo possível. É preciso que tudo isso seja belo. É preciso que súbito tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche no olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços alguma coisa além da carne: que se os toque como ao âmbar de uma t...
Briga no Beco Adélia Prado Encontrei meu marido às três horas da tarde com uma loura oxidada. Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados. Ataquei-os por trás com mãos e palavras que nunca suspeitei conhecesse. Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei, gritei meu urro, a torrente de impropérios. Ajuntou gente, escureceu o sol, a poeira adensou como cortina. Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura, sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea ofendida, uivava. Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se. Quando não pude mais, fiquei rígida, as mãos na garganta dele, nós dois petrificados, eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos, as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças. Desde então faço milagres.
é muito claro amor bateu para ficar nesta varanda descoberta a anoitecer sobre a cidade em construção sobre a pequena constrição no teu peito angústia de felicidade luzes de automóveis riscando o tempo canteiros de obras em repouso recuo súbito da trama. Ana Cristina César
Amor violeta Adélia Prado O amor me fere é debaixo do braço, de um vão entre as costelas. Atinge o meu coração é por esta via inclinada. Eu ponho o amor num pilão com cinza e grão de roxo e soco. Macero ele, faço dele cataplasma.
Clima-X Aldir Blanc Quando, agonizantes, gozamos, transcendemos essa históriade ser mulher ou ser marido: É como se você fosse terra e eu tivesse chovido.