Pular para o conteúdo principal

Lá estou, sentado no meio do largo, com um livro na mão, a ver quem passa. Fizeram-me um pouco maior que o tamanho natural, suponho que para que se me veja melhor. Não sei quantos anos irei estar ali. Sempre havia dito que o destino das estátuas é acabar por serem retiradas, mas, neste caso, quero imaginar que me deixarão em paz, alguém que em paz duplamente regressou à sua terra, como pessoa que é e, a partir de agora, como bronze que passou também a ser. Ainda que a minha imaginação algumas vezes me tenha feito cair nos delírios mais absurdos, nunca se atreveu a admitir que um dia me levantariam uma estátua na terra onde nasci. Que fiz eu para que isso sucedesse? Escrevi uns quantos livros, levei comigo, por todo o mundo, o nome de Azinhaga e, sobretudo, nunca esqueci os que me geraram e educaram: meus avós e meus pais. Deles falei em Estocolmo perante uma assistência ilustrada e fui compreendido. O que vemos de uma árvore é apenas uma parte, importante, sem dúvida, mas que nada seria sem as suas raízes. As minhas, as biológicas, chamam-se Josefa e Jerónimo, José e Piedade, mas há outras que são sítios, lugares, Casalinho e Divisões, Cabo das Casas e Almonda, Tejo e Rabo dos Cágados, chamam-se também oliveiras, salgueiros, choupos e freixos, caçadeiras navegando no rio, figueiras carregadas de frutos, porcos levados a pastar, e alguns, ainda bacorinhos, dormindo na cama com os meus avós para que não morressem de frio. De tudo isto estou feito, tudo isto entrou na composição do bronze em que me transformaram. Mas, atenção, não houve geração espontânea. Sem a vontade, o esforço e a tenacidade de Vitor Guia e de José Miguel Correia Noras a estátua não estaria ali. Do mais profundo da minha gratidão lhes deixo aqui um abraço, extensivo a todo o povo de Azinhaga, ao cuidado de quem deixo esse outro filho que sou eu.

José Saramago

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Lo que me gusta de tu cuerpo es el sexo. Lo que me gusta de tu sexo es la boca. Lo que me gusta de tu boca es la lengua.  Lo que me gusta de tu lengua es la palabra. (Julio Cortázar)
‎"[...] ousei escrever, em algum lugar, 'Freud e eu'. [...] Por que haveria algo de escandaloso, por parte de alguém que passou a vida inteira ocupado com a contribuição de Freud, em dizer 'Freud e eu'?". Lacan, "Seminário 16".
Ambiciosa Florbela Espanca Para aqueles fantasmas que passaram, Vagabundos a quem jurei amar, Nunca os meus braços lânguidos traçaram O voo dum gesto para os alcançar ... Se as minhas mãos em garra se cravaram Sobre um amor em sangue a palpitar ... - Quantas panteras bárbaras mataram Só pelo raro gosto de matar ! Minh’ alma é como a pedra funerária Erguida na montanha solitária Interrogando a vibração dos céus ! O amor dum homem ? - Terra tão pisada, Gota de chuva ao vento baloiçada ... Um homem ? - Quando eu sonho o amor de um Deus ! ...