Pular para o conteúdo principal
O último carinho do mundo
De Tati Bernardi.

O amor com hora para acabar é o único que me interessa, é o único que sei amar, é até onde posso ir.
Imagine que um avião cheio de mágoas e crianças envelhecidas pela dor vai bater no seu mundinho perfeito e estratégico e fazer explodir pelos ares o que você acreditava que era uma vidinha feliz e romântica.
Já eram ombros largos, já era porta-retrato de sorrisos endurecidos pra sempre, já era o seu ódio pela imperfeição.
Por isso, antes de dormir hoje, imagine que, no meio da noite, aquele cara de todos os dias, que já lhe causou alguma emoção mas agora se concentra apenas em roncar, vai se levantar de farda e marchar para uma inexistência de honra e se perder num tempo distante.
Sei lá, acho que tô lendo Herman Hesse demais e estou com a temática guerra na cabeça, mas imagine qualquer outra coisa, então: que ele vai espirrar e a força do espirro será tão forte que ele vai se despedaçar em moléculas pelo universo e adeus olhos grandes e boca pequena.
De qualquer maneira, o jogo é esse: por um segundo, toque a pele dele como se fosse a última vez. Olhe com carinho dobrado aquela esquininha entre a coxa e o saco, repare como é perfeito o diâmetro lisinho e virgem entre o cabelo e a orelha e concentre-se com a maior dor do mundo, a dor do presente que nunca mais voltará, no quentinho ingênuo da sua nuca.
Importa mesmo que ele não corte a unha do pé ou que faça xixi sentado por preguiça? Importa que ele se dedique tanto às plantinhas e tenha a horrível mania de berrar palavras estúpidas quando fala com algum amigo menos inteligente?
Você tem uma piedade melancólica que disfarça seu medo quando as fotos antigas te encaram e lembram: vai acabar, minha amiga, uma hora vai acabar mesmo você sendo tão legal em só levar a vida e carregar uma alma eterna. Essa porra toda, boa ou não, vai acabar.
E você, fechadinha no seu mundo seguro de rotinas e roteiros estipulados, esquece da fragilidade das horas, esquece do fim de cada segundo a cada segundo, você ignora o encantamento de agora porque pensa que agora faz parte de uma longa vida igual que ocorrerá de agoras em agoras, sem que isso seja percebido.
Pois muito bem, esqueça que daqui a um ano vocês vão morar juntos, esqueça que daqui a dois se casarão, que daqui a três farão juntos um lindo bebê e que daqui a quatro mudarão para uma casa maior, esqueça que daqui a dez, se ele continuar roncando, cuidando tanto das plantas e berrando idiotices para idiotas, sua vida será um inferno. Esqueça o script e neste exato segundo olhe com a frieza de quem encara o absurdo da morte desprovido de mantas, chás e palavras quentes e lembre-se o que foi que você sentiu a primeira vez que ele encostou em você e, por fim, sinta a mesma emoção pela última vez. A última.
Desamarre da sua carcaça o peso do destino programado no Excel, tire a corcunda de gordura cheia de certezas das suas costas, deixe de ver a vida com um peso da vida toda e veja a vida como se, por um segundo, Deus te deixasse ver o que é a vida.
Amanhã pela manhã ele já terá ido embora, sua calça não estará mais do avesso, seu tênis não estará mais tão longe do seu par que se perdeu atrás da porta, suas moedinhas não estarão mais acumuladas em cantinhos inúteis, seus detalhes não serão mais pequenos detalhes deste mundo.
Amanhã pela manhã o lado dele da cama será tão limpo e liso quanto a sua vida chata e vazia, o bafo matinal dele deixará espaço no ar para um nada que seca do nariz até a alma, a mania dele de abrir os olhos ainda fraco para encarar a vida naquelas primeiras frestas de sol deixará espaço para que o sol te cegue e te enfraqueça sem nenhum pára-raio.
Importa tanto que vez ou outra ele solte uma gíria qualquer e se perca, autista, desfocando de você? Importa que ele não saiba quem é Jamie Cullum e John Fante?
Coloque agora aquela música que você pula toda vez, porque sabe que daqui a cinco minutos vai tocar novamente, e a escute de joelhos, sinta cada pó de grafite de cada nota e saiba que é a última vez que ela tocará. Quando a música acabar, deixe o som da pá, da terra e da tampa aterrorizar você. Acabou tudo, tudo morreu. Imagina como seria poder socar o fim e agarrar-se novamente à vida?
Ame, não sempre porque se fôssemos sempre poetas não teríamos racionalidade para construir alturas mais próximas do céu, sem saber se você terá coração na próxima batida.
Neste último respiro do homem que você pensava que veria pelos próximos mil anos, tente zerar todo o seu preconceito e tente zerar seu corpo de qualquer orgulho. Esteja mais pelada do que nunca e ainda que o frio seja insuportável se concentre em apenas não correr, em apenas não fazer uma piada para disfarçar, em apenas não olhar no relógio como se a adrenalina fosse mais uma coisa com a qual você já sabe lidar e está entediada. Tente morrer junto com aquele segundo que durou pouco mas foi demais para continuar, só assim você saberá como é bom renascer no próximo segundo, e só assim você saberá que morrerá novamente e que estamos morrendo, vivendo ou não.
Este carinho é o último, então que se dane que ele tenha uma pinta com cabelo nas costas. Este carinho é o último, então que se dane que aquela coluna já tenha se curvado e ainda possa se curvar por outras reboladas que não sejam a sua. Este carinho é o último, então que se dane a sua posse, a sua necessidade quase espiritual de controle, a sua felicidade só verdadeira quando existe comando. Este carinho é o último e tente enxergar como é eterno e perfeito mesmo tendo a falha fatal da interrupção.
Eu só sei te amar hoje, se eu tiver que te amar hoje para sempre eu vou me soterrar tanto que ficaremos sem o carinho de agora.
Este é o último carinho para sempre e, mesmo você não me completando, não dizendo o que eu quero ouvir, não ficando até tarde comigo quando sou engolida pelo silêncio e pelas marteladas do meu cérebro, eu te amo como se este fosse o único carinho. E então amo como se fosse o último amor e então amo para sempre.

Comentários

Anônimo disse…
Entrei no teu blog quando estava procurando um poema da Elisa Lucinda no google. Não achei o poema, mas achei um outro lugar de mim. Eu não sabia o quanto eu podia ser outra pessoa. Agora caminho os teus passos e as palavras e não palavras com que tu sem saber me narras. Adorei absolutamente tudo o que já li aqui, mesmo o que não gostei.

Postagens mais visitadas deste blog

Modéstia às favas, porque é lindo demais e é pra mim. E porque eu amo esse menino branco. . . Porque você é o que me importa do Fer . . Fico preocupado ao pensar que você talvez não saiba que me esforço todos os dias para não interromper reuniões, ligações, debates e seminários e contar sua última piada ou o comentário que fez ao ver a manchete do jornal. . Também não deve saber que melhoro minha postura, arrumo meu cabelo e minhas roupas ao imaginar que talvez te encontre ou que possa me ver de longe, andando distraído por uma rua qualquer. . Sempre que encosto meu ouvido em seu peito redescubro um pouco de fé ao pedir que te protejam e te façam menos frágil do que me parece naquele instante, com seu pequeno punho fechado a carregar meu mundo inteiro. Juro, então, que te fazer feliz vai ser meu exercício diário, como se dele dependesse o resto da minha vida. . Juro também que vou pensar na sua gargalhada, nas danças inusitadas e no carinho que me faz quando já está a dormir sempre que...
Minha irmã me mostrou, e eu fiquei emocionadíssima. Só quem teve vai entender (se é que alguém da minha geração não teve...).
Açúcar emprestado Luis Fernando Veríssimo Vizinhos de porta, ele o 41 e ela o 42. Primeiro lance: ela. Bateu na porta dele e pediu açúcar emprestado para fazer um pudim. Segundo lance: ela de novo. Bateu na porta dele e perguntou se ele não queria provar o pudim. Afinal, era co-autor. Terceiro lance: ele. Hesitou, depois perguntou se ela não queria entrar. Ela entrou, equilibrando o prato do pudim longe do peito para não derramar a calda. - Não repara a bagunça... - O meu é pior. - Você mora sozinha? Sabia que ela morava sozinha. Perguntara ao porteiro logo depois de se mudar. A do 42? Dona Celinha? Mora sozinha. Morava com a mãe mas a mãe morreu. Boa moça. Um pouco... E o porteiro fizera um gesto indefinido com a mão, sem dizer o que a moça era. Fosse o que fosse, era só um pouco. A conversa começou com apresentações e troca de informações - "Nélio", "Celinha", "Capricórnio", "Leão", "Daqui mesmo", "Eu também" - e continuou e...