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Coexistência
L. F. Veríssimo

O advogado disse que tudo que eles tinham adquirido depois do casamento seria dividido entre os dois.
- Parabéns - disse ele. - Você vai ficar com metade da minha alergia seborrágica de fundo nervoso.
- Você já tinha caspa quando casou comigo! – reagiu ela.
Ele a ignorou e perguntou ao advogado:
- E o apartamento?
- Isso vocês dois vão ter que decidir.
- O apartamento fica perto da casa da minha mãe e da minha ginástica, eu me criei nesta zona e os vizinhos simpatizam muito mais comigo do que com você - disse ela.
- O quê?! Os vizinhos me adoram.
- Proponho um plebiscito - disse ela para o advogado.
- Quem quer ficar comigo e quem quer ficar com ele. Sabe como é o apelido dele no prédio?
- Calma, calma - pediu o advogado.
- Como é meu apelido no prédio?
- Calma insistiu o advogado. - isso não vem ao caso. O apartamento vocês decidem depois. Nesta sala, por exemplo, o que foi adquirido pelos dois?
- Esta poltrona.

***
A poltrona. O primeiro estofado que tinham comprado. Ele sentado na poltrona, ela no seu colo. Recém-casados.
- De quem é esse narizinho?
- É seu…
- De quem é essa boquinha?
- É sua…
Depois tinham comprado o sofá.
- Onde está aquele umbiguinho que eu gosto tanto?
Os dois deitados no sofá. Ela abria a roupa para mostrar o umbigo.
- Está aqui?
- Aí está ele!
Ele beijava o umbigo dela.
Depois tinham comprado a televisão. E, um dia, os dois estavam abraçados no sofá, olhando a televisão, e ela começou a apalpá-lo dizendo:
- Onde é que está?
- O quê?
- Você sabe.
- Não sei, não. O quê?
- Ah, você sabe.
- Procura que você acha…
E ela finalmente achou. O controle remoto da televisão. De certa maneira, aquele diálogo fora o começo do fim. Tudo que acontecera depois fora decorrência. Tinha acabado a mágica.

***
Um dia, no banheiro, ele chamara a mulher, apontara para as escovas de dentes dos dois penduradas lado a lado, e dissera:
- Olha que coisa bonita. Somos nós dois. Nada simboliza a união de duas pessoas como suas escovas de dentes, lado a lado, num armário de banheiro. Na cerimônia de casamento, o padre devia perguntar "aceita a escova de dentes dessa mulher ao lado da sua pelo resto da vida?"
- Pelo resto da vida, até que a morte nos separe…
- Ou o aparelho de barba - dissera ele, abraçando-a por trás.
- O quê?
- Sabe que a principal causa de divórcio no Brasil é a mulher raspar as pernas com o aparelho de barba do marido e depois não limpar? Em segundo lugar, vem o adultério e, em terceiro o ronco.
Ela dera um tapa brincalhão na sua mão.
- Pára. E eu só usei uma vez.
- Promete que não usa mais?
- Prometo.
- Jura? Pelo que há de mais sagrado? Pelas nossas escovas de dente?
- Juro. Pelas nossas escovas de dentes.

***
Se tivesse ficado só naquilo, o casamento talvez ainda pudesse ser salvo. Mas ele continuara. Mesmo beijando-a na nuca, ele continuara.
- Sabe o que duas escovas de dentes penduradas lado a lado simbolizam? Coexistência. Não existe intimidade maior do que a de duas pessoas que juntam suas escovas de dentes. E a coexistência é impossível, a intimidade é impossível, o casamento é impossível se um raspa as pernas com o aparelho de barba do outro - e depois não limpa!
- Eu já disse que não acontecerá de novo.
- você não tem o seu depilador? Pois use o seu depilador e largue o meu aparelho de barba.
- Está bem, já disse!
Mas não havia mais salvação.

***

É o tempo. O tempo é um demolidor. Por isso estavam os dois ali com o advogado, decidindo o destino dos estofados.
Entraram no quarto de dormir.
- Compramos a cama juntos.
- Eu não quero a cama - disse a mulher. - Pode ficar pra ele. Só me traria más recordações.
- Ah, é? Ah, é?
- Calma - disse o advogado.
***

Exatamente dez anos antes, numa noite, depois do sexo, naquela cama, ela exclamara:
- Puxa!
E ele, orgulhoso:
- Você diz isso … sinceramente?
- E digo de novo. Puxa! Você, heim?
- Um adjetivo. Quero um adjetivo.
- "Puxa" não serve?
- Não. "Puxa" é interjeição. Quero um adjetivo qualificativo.
- Deixa ver…
- Magnífico? Glorioso? Ciclópico? Apoteótico?
- Foi perfeito!
- Só perfeito?
- Mais que perfeito.
- Foi a melhor de todas até hoje?
- É difícil comparar com a outra. Cada uma tem seu clima, suas características… Cada uma é boa a sua maneira.
- Mas esta foi espetacular?
- Foi…
- Numa escala de um a dez…

***
Cinco anos antes, naquele mesmo quarto, chegando em casa depois de uma festa, ela, bêbada, chutara um sapato do pé e quase o acerta.
- Você quase me acertou!
- Chute em sapato você também. Faça alguma coisa excitante na sua vida.
Ela chutara o outro sapato, forçando-o a abaixar para não ser atingido.
- Não quero chutar sapato. Agora pára.
- Vem cá, vem.
- Pra quê?
- Vem abrir o zi… o zi… Palavra difícil. O zíper do meu vestido.
Ele fora abrir o vestido dela. Ela ordenara:
- Com os dentes.
Ele tentara pegar a chapinha do zíper com os dentes, mas não conseguira.
- Não consigo.
- Do que adianta ter um marido se ele não consegue abrir um zíper com os dentes?
- Pára com isso e … onde você vai?
Ela estava saindo pela porta, descalça.
- Vou voltar pra festa e arranjar um homem pra abrir o meu zíper com os dentes.
Ele a segurara e a empurrara para a cama.
- Tanto homem na festa e eu tinha que vir pra casa logo com você! Por quê?
- Eu sou seu marido.
- Exato. Eu devia saber que não ia dar em nada…

***
O tempo, o tempo. Com o tempo um grande amor degenera para pequenas maldades.
- Como era o meu apelido no prédio?
- Nem queira saber.
E o advogado:
- Calma, calma.

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